sábado, 16 de julho de 2011

diferente


Preciso de me libertar, de repor energias, de ressurgir! Para me sentir viva quero de mais... não me chega ou satisfaz aceitar passivamente o que as maiorias recebem como certo! É mais que isso... mais que tudo e qualquer coisa.
Atravesso a rua pisando apenas os traços brancos. Danço com as mãos no chão. Os meus melhores beijos são na testa. No parque brinco com os baloiços em vez de os usar. Quando abraço toco no corpo todo da outra pessoa. Se chover visto biquíni e desfruto da água. Começo a rir-me, demoro muito a parar! Se acordo cedo grito! Quando faço uma ferida, penso que podia ser pior! Quando estou mal disposta, choro sem querer. Na praia ando ao pé-coxinho. Canto nos bancos de jardim. Aproximo-me das pessoas que gosto e sussurro-lhes. Pinto o meu corpo e danço numa parede branca. No inverno uso tops. Escrevo com a boca e falo com caneta. Quando uso máquinas fotográfica, faço-o sempre ao contrário. Se me irritam rio. Se me provocam magoou-o. Sonho com cores. Balanço-me quando ando na rua. Tenho que ser igual a toda a gente?

Erro de Ligação


Capitulo I

A sua rotina era sempre a mesma há seis dias. Desde que tinha sido internada, repartia o seu tempo a dormir, a ler e a comer. Estava confusa, mas não menos do que o seu primeiro dia ali. Ansiava, nervosa, pelo dia da sua alta; mas, ao mesmo tempo, sabia que ainda ia demorar muito tempo. Muitas vezes, sentava-se na sua cama a olhar pelas grades da janela, todas as árvores lá fora, o brilho do céu, o sol, a chuva… tinha saudades de sentir as variações de clima, o vento no cabelo, a chuva na ida para a escola. Tinha saudades de pisar a relva, ou andar descalça pelo mar. Tinha saudades de estar com as pessoas que gostava, de rir, de conviver, de passear, até das pequenas coisas, como tomar café ou ir a uma discoteca. Em vez de tudo isso, continuava fechada ali, a ver a sua vida passar-lhe entre os dedos. E, as vinte e quatro horas que anteriormente eram pouco tempo para fazer tudo o que queria, no internamento eram uma eternidade que jamais passava.
Muitas vezes, sentia que ia apodrecer ali dentro. Sofria por não estar a aproveitar a vida como qualquer adolescente de dezasseis anos normal. Parecia que estava presa numa jaula, e era dominada pelos imensos medicamentos que ingeria todas as refeições. Pensava que preferia ter uma doença, e estar num quarto de hospital, receber visitas e saber o seu estado. Ali, mantinha-se sozinha. Rodeada de gente com problemas como o seu, ou pelo menos semelhantes. Com empregadas e médicas que, no egocentrismo da sua vida, limitavam-se a ser competentes. Não tinham sequer um pouco de compaixão ou carinho pelos doentes que lhes passavam pelas mãos. Era um tédio aquele ritmo de vida. Não tinha nem podia ter contacto com ninguém do exterior. Na noite que lá chegou de ambulância, vinha com a roupa do corpo e o seu telemóvel. Quando entrou ali, sem saber o que a esperava, tiraram-lhe o telemóvel, o cinto, e revistaram-na como se fosse uma criminosa. Apresentaram-lhe um quarto pequeno, com grades na janela, e com duas camas. Tinha um pequeno armário branco junto á porta, que estava repleto de assinaturas e marcas de quem já lá tinha passado anteriormente. Nessa noite, dormiu encolhida para se proteger do desconhecido. Depois, o tempo ia passando, e quando já lá estava há seis dias, sentia-se como uma marioneta, comandada por todas as pessoas que lá estavam.
Conheceu apenas meninas, umas com problemas idênticos ao seu, outras não. Havia apenas um rapaz, que era epiléptico, e tinha sido abandonado pelos pais. E, como tinha ali sido deixado, ali tinha ficado. Fechado nas grades do edifício, muitas vezes sem sair para sentir a brisa de Maio. As raparigas estavam apenas de passagem. Umas com depressão, outras com bulimia ou anorexia, outras recuperavam de toxicodependência porque não tinham dinheiro para irem para clínicas para fazerem o devido tratamento; outras de tentativas de morte… outras de tudo junto. Carolina envolvia-se um pouco com todos aqueles problemas. E identificava-se um pouco com todos eles. Inicialmente, refugiava-se no silêncio, evitando trocar palavras com quem quer que fosse. Mas, com o passar dos dias, e partilhando as divisões com todas aquelas raparigas, teve necessidade de começar a comunicar.
Ao início, tratava apenas das necessidades básicas, comer e dormir, lendo apenas alguns livros que a sua mãe lhe tinha deixado, para passar o tempo e, já que não podia sair dali, ao menos deixava que a sua imaginação ganhasse asas e se libertasse daquelas muralhas que a aprisionavam. Com o tempo, foi percebendo que precisava sair dali. E que, para isso, tinha que se mostrar bem, não se mostrar contrariada, e seguir, à risca, todas as coisas que a mandavam fazer. Começou a tomar banho, a trocar de roupa, a comer quando a mandavam, e, aos poucos, a conviver. Parecia mesmo uma prisão. Mas não. Ninguém que ali estava tinha cometido algum crime contra os outros. Estavam ali todas a zelar pelas suas melhoras, e a lutar contra o crime que queriam cometer contra elas próprias.
Carolina, numa noite de desespero, correu para a varanda e tentou matar-se. Era um comportamento que a perseguia há já alguns meses. Tinha como passatempo fazer coisas que a deixassem entre a vida e a morte. Cortava-se, empoleirava-se na varanda ou na janela, do quinto andar onde morava, correndo o risco de cair. Atravessava a rua sem olhar, e tinha deixado de comer. A sua cabeça tinha entrado em curto-circuito, e não conseguia escolher entre as atitudes certas e as erradas. Porém, naquela noite que correu para a varanda, durante uma discussão, e se tentou atirar, a família assistiu a tudo. Parecia que a Carolina dos outros tempos não era aquela. Sentiam-na como uma desconhecida, e olhavam-na com estranheza. Já tinham assistido àquele comportamento algumas vezes. Todavia, daquela vez foi definitivo. A mãe puxou-a pelas pernas, quando subia para o muro da varanda. Carolina caiu no chão e, como morta, foi arrastada para dentro de casa. A mãe deixou-a deitada no chão e sentou-se em cima dela, para que não se levantasse mais. O irmão de Carolina fez o que a mãe de ambos lhe mandou. Foi buscar um comprimido calmante e o telemóvel. A mãe obrigou Carolina a tomar o remédio, e ligou para o INEM. Depois de toda aquela confusão, Carolina permaneceu deitada no chão. A sua cabeça parecia que ia explodir; e cada vez sentia o seu corpo mais pesado. Pensou que se queria levantar; mas a sua cabeça dava-lhe ordens expressas para que ali permanecesse estendida, a repousar.
Lembra-se de acordar numa maca de hospital. Junto dela estava uma enfermeira, e, noutra cama, uma doente. Começou a chorar compulsivamente! O que estava a acontecer? Perguntava-se constantemente! O que quereria dizer aquilo? O pensamento da morte ocupava-lhe a cabeça. Queria desaparecer. Fundir-se no vento, e não passar de um espírito vagueando no mundo. Não queria viver presa naquele corpo, exausta de todos os sentimentos que preenchiam a sua vida. Quando se levantou da cama para correr e fugir dali, acabar com o que tinha começado, deparou-se com as portas fechadas à chave e num choro sufocado, encostou-se a uma porta até cair sentada no chão. As lágrimas eram de ausência de uma parte de si. Eram de ser uma pessoa com quem não sabia lidar. Eram de uma nova vida! Imediatamente, veio uma médica em seu socorro. Tentar animá-la e levá-la dali. Já tinha acordado, já podiam falar. Entre umas e outras perguntas, a médica fez uma afirmação “vais ser internada”. Se o seu mundo já estava aos seus pés, naquele momento, evaporou-se. Sentiu-se no escuro vazio à procura de uma luz. Mas não. A luz não aparecia, e ser internada já era um facto. A vontade súbita de morrer, subiu-lhe de novo à cabeça. Ainda assim, teve que fazer o que tinha decidido para o seu próprio bem.
O homem não consegue viver sem comunicar com o exterior. Passar as suas vivências, partilhar os seus conhecimentos. Tem necessidade de se exprimir, de viver. Carolina apercebia-se disso cada vez mais… com o passar dos dias, já sabia o que tinha que fazer, já aproveitava o tempo para trocar experiências. Trocava livros e cds com as outras que também lá estavam. A rapariga com quem passava mais tempo era Solange. Não sabia bem o que sentia por ela. Estavam a começar uma amizade. Mas não sabia se podia confiar, ou não. Afinal, dentro do internamento, corriam boatos de que Solange roubava as outras raparigas. Carolina não se importava muito com isso. E, ao trocar experiências com essa rapariga, percebia que o mundo não lhe caíra só aos seus pés. De certeza que todas aquelas meninas que ali estavam, sentiam-se a vaguear no ar, sem chão onde pousar e serem felizes. Solange estava grávida. Tinha dezoito anos. Estava grávida de um namorado que gostava há já algum tempo. Depois de ter sido violada várias vezes a partir dos doze anos, por um tio, começou a abusar de drogas, e cada vez se enterrava mais nisso. A sua mãe, quando descobriu a gravidez, e como já sabia do seu uso habitual de drogas, internou-a. Carolina, que tinha problemas completamente diferentes, apercebeu-se de como não estava a dar a oportunidade certa à vida. Solange estava perdida, porque viver a tinha feito perder-se. Enquanto que Carolina perdera-se sozinha. Ela própria fez questão de se afundar, sem precisar da ajuda de ninguém. Apercebia-se o quão egoísta estava a ser, em magoar-se por coisas inevitáveis à existência humana. Solange, por sua vez, não tinha tido poder de escolha. A vida dela tinha sido aquela sem interferência dela própria. Obviamente que a escolha de seguir o rumo ligado às drogas, foi dela. Mas as violações, o desleixo da sua mãe, e o abandono de seu pai; o amor por um rapaz que não era correspondido, e depois um filho que carregava no seu ventre, e que o pai o negara… tudo isso, remexia-lhe na cabeça e perturbava-a… procurando refúgio na droga, onde se diz que os fracos procuram. Mas, Carolina olhava para ela com admiração. Não por tudo o que lhe acontecera, não por estar presa e dependente de drogas, mas por ainda sobreviver depois de tudo.
A amizade entre as duas crescia. Era bom, porque assim o tempo passava mais rapidamente para as duas. Entretinham-se com jogos, conversas de raparigas, com músicas, revistas... A verdade é que ambas descobriram que, acompanhadas, o tempo passava muito mais rápido. Pediram para começarem a dormir na mesma camarata, para estarem ainda mais tempo juntas. Na realidade, o seu inconsciente queria que estivessem unidas, para se esqueceram do que as fizera encontrarem-se ali. Para o tempo passar, sem que se apercebessem que estavam num hospital para malucos. Separavam-se apenas quando iam à psiquiatra e à psicóloga. Aí, invariavelmente, tinham que falar dos seus problemas, do que as preocupava, em que pensavam. Faziam jogos, desenhos, escreviam textos. Tudo isto, para que as médicas percebessem o que elas tinham. Era doloroso, porque iam a médicas diferentes em horários igualmente incompatíveis. E por isso, ás vezes ficavam sozinhas. Nessas consultas, Carolina abreviava o mais que podia. Não gostava que através do que dizia lhe fizessem um diagnóstico de personalidade, de comportamento. Achava impossível e até absurdo que percebessem como ela estava no interior, se nem ela própria tinha conseguido perceber. Despejou todas as informações que pensava que a tinham levado para ali. A morte do pai, depois de anos dolorosos e intermináveis de doença. O seu pai era tudo para si. Não que não gostasse da mãe, mas dava-se muito melhor com o pai. Gostos iguais, pensamentos semelhantes… A doença incurável da mãe, diagnosticada no dia da morte do pai. O facto de ser gorda e feia! Queria ser como as outras miúdas. Magra, com curvas bem desenhadas, e os ossos da cintura bem definidos. Queria ter namorados como as outras da sua idade. Poder experimentar coisas novas. E, assim, quando começara a emagrecer, e os rapazes começaram a olhar para si, procurava toda a atenção que precisava nos rapazes que muitas vezes nem conhecia. Estava numa depressão sem volta. Queria desaparecer… mas Solange abreviava esse sentimento.
A vida é, numa palavra, insignificante. Pode depender de cada um a sua morte. Mas também pode não depender. E, saber que cada pessoa luta anos para conseguir ter uma boa vida, e no final morre, é absurdo! Mas afinal o que é uma boa vida? Se quando as pessoas morrem, deixam em terra todo o suor do conquistado. O conceito de viver varia de pessoa para pessoa. É importante estar alerta sobre o mundo que rodeia cada um, porque nunca se sabe o futuro… o que está para acontecer é incerto e inesperado. Daí a viver ser uma luta constante e difícil, pela sua imprevisibilidade. Nem toda a gente aguenta o sufoco de não saber o que vai acontecer, pois procura respostas que não existem. É complicado viver num mar de incertezas. É complicado ser magoado, morrer alguém importante, é complicado sofrer. Porque nas alegrias, ninguém pensa na morte; pensa que será tudo lindo e perfeito para sempre. Quando na realidade isso não existe. Há, sim, momentos de felicidade. Mas o ideal de felicidade completa, ninguém o atinge. E se o diz, se diz que é feliz, é mentiroso. Mente a si próprio, e aos outros. Para que assim consiga livrar-se do sofrimento. A vida é para os fortes. A vida é para quem luta por ela.
Passou um mês e meio. Entre consultas com a psicóloga e a psiquiatra, entre comprimidos, falta de apetite, e conversas. Entre pessoas doentes, malucos e os seus próprios problemas, Carolina conseguiu atingir a meta: teve alta. Solange ficara para trás. Também tinha entrado mais tarde. No momento que soube o que a esperava, foi rapidamente juntar toda a roupa que a mãe lhe havia trazido aos poucos. Guardou também o champô e a escova de dentes. E, sentada na entrada, aguardou que a viessem buscar do hospital psiquiátrico onde tinha passado o ultimo mês e meio. Demorou, mas a mãe apareceu. Caminhou pelos jardins que envolviam o hospital. Pôde olhar de perto as árvores que durante todos aqueles dias tinha que ver por entre as grades. Já conseguia sentir o cheiro a vida, ouvir os pássaros, pisar a relva, ver as flores. Não falava com a mãe. Embora tivesse sido ela a ir buscá-la, também tinha sido ela a permitir a sua entrada naquele manicómio. Mas aproveitava com respeito a sua segunda oportunidade da vida. Quando, entrou no carro, ainda andou uns cinco minutos dentro do jardim do hospital. Na saída, o segurança, teve que ver o papel com a alta e o B. I., para autorizar a saída e abrir o portão. O dia com que tanto esperou havia chegado. Mas para trás, deixava também momentos por viver com a sua nova amiga. Deixava uma oportunidade de provar que estava bem; embora lá no fundo do seu inconsciente soubesse que precisava de ser internada para começar a dar valor à sua vida.
Saiu de lá directamente para a farmácia. Tinha que dar continuidade ao tratamento que começara. E saiu também com um diagnóstico: era bipolar. E, por isso mesmo, tinha que controlar os “picos” de emoções. Preferindo mantê-la com medicamentos que a drogassem e a fizessem dormir horas a fio. Assim, como podia regressar á sua vida normal? Tinha que continuar a tomar aqueles remédios dopantes que a apagavam da sua vida. Que lhe tiravam todas as energias, toda a vivacidade de uma adolescente de dezasseis anos. A primeira semana, após a sua saída do internamento, passou-a no quarto a dormir. Levantava-se apenas para ir à casa-de-banho e, para de vez em quando, petiscar alguma coisa. O seu quarto estava às escuras, nem um furo havia nas persianas. Estavam fechadas ao máximo, para que não houvesse claridade. Não gostava de se sentir drogada e sempre a dormir. Mas ao mesmo tempo, era um pretexto para não encarar a vida. Sentia-se fraca e frágil. Por isso, preferia negar à humanidade a sua existência. O seu refúgio não podia valer-lhe para sempre. Algum dia teria que aparecer e declarar à sociedade que estava de volta. Mas não queria pensar nisso. Quanto mais tempo pudesse adiar esse momento, melhor.
Houve um pré e um pós internamento. Mesmo quando ainda estava em casa, já se comportava como uma verdadeira desequilibrada. Embora continuasse a ir para a escola, a sair com os amigos, e a fazer tudo normal que era suposto ela fazer… em casa, cortava-se; não comia, chegando por vezes a desmaiar; vomitava sempre que a mãe a obrigava a comer; e torturava-se muitas vezes, olhando-se no espelho. Chegava a entrar em apneia, quando ficava em pânico por pensar na sua vida. Mas, depois do internamento as coisas já eram diferentes. Ela não vivia. Limitava-se a respirar. Estava esquecida pelo mundo, ali, no seu quarto. Na escola, o ano já estava perdido. Carolina, no décimo ano, havia perdido dois meses: um e meio com a recuperação no hospital, mais duas semanas antes e depois do internamento. Isto sem contar com as “baldas” que já tinha dado durante o resto do ano lectivo. Ela não punha sequer a hipótese da escola na sua cabeça. Naquele quarto, vagueava pelo mundo, mas sem nunca tocar nos pontos essenciais da sua vida. Sempre ignorando que precisava de se sentir existente para conseguir triunfar.
Cansada de ouvir os choros e berros de Carolina, um dia, pelas nove da manhã, a sua mãe, entra no seu quarto e abre a persiana. Diz à sua filha, enquanto puxa a cortina:
- Acabou-se esta situação! Levanta-te, e vai tomar banho. Vou-te levar à escola.
Carolina, como sempre, estava com o efeito milagroso de medicamentos que a apagava por completo. Resmungou, mas a mãe voltou a relembrá-la do que tinha dito antes. Ainda com os olhos fechados, levantou-se, e depois de tirar a roupa na casa de banho, enfiou-se debaixo do chuveiro um minuto, que lhe fez apurar os sentidos, e começar a ficar desperta! Depois de sair do internamento, tinha perdido a necessidade, de novo, de tomar banho, de se vestir... Mas ali, com o chuveiro a reanimá-la, sentiu-se logo mais viva. O simples facto de estar a tomar banho, a saber que ia sair de casa, que ia respirar ar limpo, sem estar abafado como o do quarto dela. O seu espírito apoderou-se logo do seu corpo, e começou a florescer de novo. Ao sair do banho, teve vontade de pôr creme, de fazer um penteado diferente, de pintar as unhas. Por momentos pensou que o internamento não tinha passado de um sonho. Mas, quando se olhou ao espelho, a sua auto-estima escorregou como que a pique de uma colina gigante. Perdeu-se de novo. A sua cabeça borbulhou, e a mensagem “Quem pensas que és?” repetia-se no seu interior. Teresa, a mãe de Carolina, falava com a empregada na cozinha. Dizia-lhe para que arejasse o quarto, mudasse os lençóis, limpasse e aspirasse tudo, já que, com Carolina lá dentro, nada disso era possível fazer. Nisto grita, da cozinha para o quarto, um “demoras?” preocupado. A filha de Teresa vem ter junto da mãe e diz:
- Não! Estou aqui. Vamos?

Capitulo II

Os dias começaram a tornar-se rotina. E parecia que todo o movimento que englobava ir para a escola, lhe trazia alguma vontade de insistir mais na sua vida. Havia uma coisa que não tinha mudado: a medicação. Isso tirava-lhe logo toda a vontade. Mesmo com ela a lutar num sentido, e mesmo que os remédios fossem para o seu bem, não estavam a ajudar porque a deixavam exausta, e sem força para continuar. Quando estava a recuperar e a controlar-se para não dormir, com o calmante do pequeno-almoço, chegava o do almoço, e já estava exausta de novo. Mas tinha medo de deixá-los de tomar. A psicóloga que a acompanhava nesta fase, não concordava com a medicação que Carolina tomava. Dizia-lhe que não lhe dava hipótese de se erguer sozinha. Ambos lutavam para o sucesso de Carolina, ela própria e os medicamentos. Mas ninguém percebia que os remédios só tinham boa intenção porque na verdade, retardavam a sua cura. Era muito duro viver com eles. A sua psicóloga dizia que eram dosagens muito fortes, para ela não parar de repente: nunca! Podia fazer-lhe bastante mal, e trazer consigo consequências definitivas, e sobretudo, graves. Ela poderia ficar ainda pior. Era apenas uma hipótese, mas podia tornar-se realidade. Era uma suposição que podia ser bem real porque, apesar de ser minoria, era existente. E se ela deixasse de tomar os medicamentos, drasticamente, a sua cabeça podia ter um “curto-circuito”.
Carolina tomou uma decisão: a sua vida não podia continuar assim. Sentia-se apagada, e o seu esforço para fazer o que os outros faziam era a triplicar. Em Junho desse mesmo ano, Carolina parou definitivamente de fazer a medicação. Não o fez progressivamente. Queria o seu bem, e assim não conseguia. E, assumindo todas as consequências dos seus actos, parou! Não disse à sua mãe, muito menos à psicóloga. Fingia que os tomava, e guardava-os num copinho que tinha num armário do seu quarto. Mas foi inevitável. As pessoas à sua volta começaram a voltar a ver a sua energia a sair pelos poros da sua pele. Os seus olhos, em vez de estarem como antes, num esforço abismal para não fechar, agora traziam consigo alegria. Notava-se que já tinha mais preocupação consigo, com a sua roupa, com os cabelos, com a pele… tratava-se mais. E, um mês depois de ter tomado a decisão que mudou a sua vida, foi confrontada pela Dra. Maria João, a sua psicóloga, que se tinha vindo a aperceber do sucedido. Não teve alternativa senão a verdade. Porém, acabou por compreender, e Carolina sentiu-se muito mais leve, por poder partilhar aquele segredo, já que não havia dito a ninguém.
A pouco e pouco a sua vida começava a compor-se. Estava tudo mais claro e mais perceptível para Carolina. Apesar de não ter passado para o ano escolar seguinte, estava tudo a começar por um novo rumo. E acreditava em si própria. Sabia, lá no fundo, que um dia ia conseguir vencer.
Depois de todo este turbilhão de emoções e sensações, Carolina resolveu ir ver o pai. Tinha saudades dele. E mesmo não tendo respostas concretas da parte dele, acreditava, que onde quer que ele estivesse, a iria guiar pelo melhor caminho. Não que ela fosse religiosa, ou acreditasse em coisas do além. Mas quando se perde o corpo de uma pessoa, a parte física; a mental vagueia entre todos, ficando sempre na consciência que ele acompanha as pessoas que gosta para todo o lado. E é bom acreditar nisso, torna a morte da pessoa que se ama, menos dolorosa. O corpo não está presente, mas a alma continua existente. Carolina sentou-se na beira em pedra da sua campa. Olhou a sua fotografia, e beijando a sua mão, sorriu. Depois entregou o beijo ao retrato que estava inserido na campa. Acendeu uma vela e pousou uma rosa, ambas brancas. Deixou-se ali encolhida, com a t-shirt cor-de-rosa, a olhar o vazio. Os seus pensamentos vagueavam por todo o lado, procurando ajuda ali. Na sua frente pedia socorro ao pai, ainda que apenas no seu pensamento. Após estar algum tempo lá, levantou-se, amarrou os seus cabelos compridos e lisos, e com um “gosto de ti” secreto, para que ninguém ouvisse, despediu-se. Caminhou até ao portão do cemitério e saiu.

Capitulo III

Em Setembro, Carolina já era uma pessoa nova. Passara as férias a trabalhar numa loja de acessórios, e na última semana, resolveu aceitar o convite dos amigos, e foram em grupo para o Gerês. Inicialmente a sua mãe não tinha muita vontade de a deixar ir. Mas prendê-la não era solução para nada. Então, deu-lhe o benefício da dúvida, e deixou-a abrir as asas, e mostrar que realmente era um pássaro que reaprendera a voar.
Quando as aulas se iniciaram, estava pronta para a nova aventura de recomeçar tudo de novo. Tinha vontade de triunfar, e mostrar a todos que não era uma “miúda traumatizada” ou “com uma eterna depressão”. Tinha tudo de novo na sua mão, se soubesse usar adequadamente. Era assim que se sentia, uma escolha variada de que podia usufruir se o fizesse bem. Ia começar tudo numa nova turma, mas continuava com os amigos do ano lectivo anterior. Nada a impedia de fazer novas amizades, obviamente. Mas os amigos mais chegados, inicialmente, eram os da sua turma antiga. Estava tudo bem, excepto uma coisa: o seu corpo continuava a torturá-la como sempre. As mulheres das revistas, da televisão, dos cartazes na rua, eram tão maravilhosas e perfeitas, porque é que ela tinha saído assim? Uma coisa tão feia e gorda. Sem curvas proporcionais, e sem desenhos ao longo do corpo. Sem uma cara linda, com olhos grandes e lábios grossos. Não tinha também um peito e um rabo que deixassem qualquer rapaz indiferente. Aliás, não tinha nada do que estava no seu conceito de beleza. E como se tudo isso não bastasse, ainda tinha espinhas e problemas de pele. Carolina ainda não se tinha dado conta de que havia gente bem pior á sua volta. Gente obesa que tinha problemas de saúde por isso mesmo. Gente cega, gente paraplégica, gente que não saía da cama de hospital há anos. Gente sem casa, gente com fome. Naquele momento, só pensava em si. Como era infeliz com o seu corpo. Quando na realidade, não se tinha dado conta, de que havia gente que supostamente deveria estar triste, mas se erguia com todas as forças, e lutava sempre por melhor.
Os vómitos depois das refeições, e as horas intermináveis sem comer, continuavam a acompanhá-la. Mas, para si, estava tudo bem. Tirando isso, estava tudo perfeito. Apesar de que emagrecer não mudava a sua cara, ou as proporções do seu corpo, ao menos era magra. Os estudos iam bem, apesar de se sentir cansada na hora de compreender a matéria, e ter que fazer muito esforço para se concentrar. Nas aulas de desporto, de vez em quando desmaiava. Desculpava-se sempre com um “não tive tempo de comer” ou “estou indisposta”, e lá convencia o professor e os colegas. Aos poucos ia conhecendo cada um, e aproximando-se mais de uns que outros, consoante as suas preferências. Os que já considerava amigos, preocupavam-se com aquelas situações, fazendo-lhe perguntas a que fugia sempre.
Quando, em Janeiro do ano seguinte, conseguiu atingir os cinquenta quilos sentiu-se realizada. Não se via como uma doente ou anoréctica. Apenas tinha feito uma dieta mais radical, para que atingisse também os seus objectivos, rápida e eficazmente. Agora sim, podia dizer que estava magra, como as outras raparigas da escola. E estava tudo bem, na escola, em casa… estava feliz, porque tinha emagrecido. Isso era o que de melhor lhe tinha acontecido! Mas, esse peso era para manter. Não se podia dar ao luxo de abusar. Muitas vezes reparava em outras pessoas a comer chocolates, bolos ou folhados cheios de gordura. Sentia a saliva a encher-lhe a boca. Uma vontade vinda em conjunto do estômago e do cérebro, mandava-a ir imediatamente buscar um de cada, e consolar-se. Respirava fundo e concentrava se em outras coisas. Num rapaz que achasse bonito e que estava ali, nas árvores ou nos bancos, ou simplesmente no desfilar de raparigas esqueléticas pelo átrio da escola.
No recomeço das aulas, depois das férias de Natal, já sentia que tinha amigos. Tinha começado o ano, a dar-se melhor com duas raparigas, a Raquel e a Inês. Mas, tinha se apercebido, que a sua diferença de idades, entre Carolina e as duas raparigas, as colocava em patamares muito distantes, que faziam com que não tivessem pontos em comum. Em pouco tempo se foi afastando delas, e juntando-se a três rapazes, que costumavam “pegar” muito com Carolina. As raparigas da turma tinham inveja por a maior parte dos rapazes engraçar com Carolina. Afinal, ela não era nada de especial. Ela própria o dizia. Tinha cabelos pelo meio das costas, completamente lisos e castanhos-claros. As repas tapavam-lhe quase toda a testa. Os olhos eram redondos e grandes, em forma de amêndoa. Tinham um tom diferente de castanho, pois eram quase negros de tão escuros. A sua pele, apesar de ter algumas marcas da sua doença crónica, era macia e morena. Tinha um recorte de lábios, que os fazia sobressair da cara. Apesar de ela própria achar que deveria ter a boca mais grossa e volumosa, tinha uns lábios extremamente bem desenhados e sobressaiam bastante no seu rosto. As pestanas, naqueles olhos enormes, eram longas e brilhantes, e parecia que usava sempre maquilhagem para que toda a gente reparasse nelas. Mas não, andava sempre ao natural. E não tinha muitos cuidados consigo, e com o que tinha de bom. Tinha um rosto leve e magro; com algumas espinhas que reflectiam a sua adolescência, apesar de que ela não aceitava. Andava assim com os seus amigos, Pedro, Francisco e Guilherme, para todo o lado. Almoçavam juntos, nos cafés ou restaurantes das redondezas da escola. Passeavam nos tempos livres, iam ao cinema. Saíam á noite juntos. Nos intervalos conversavam imenso. E, todos da turma invejavam aqueles quatro: as raparigas porque queriam o lugar de Carolina, os rapazes porque queriam o lugar dos amigos próximos dela.
As rivalidades na adolescência são inevitáveis. Porém, muitas vezes, fazem com que os jovens se sintam mesmo mal. Percam a vontade de ir para a escola, até de conhecer novas pessoas ou amigos. Fecham-se no seu “buraco” e sofrem para dentro, para que se consigam sempre mostrar fortes, e indiferentes ao que os rodeia. Isso, na verdade, é uma auto-defesa, para que ninguém se aperceba da sua fragilidade. Escondem tudo o que mostra vulnerabilidade, mostrando-se sempre, fortes. Apesar disso, sabem que é como um disfarce, e a máscara por vezes pode cair, quando menos se espera. Carolina também tinha desses problemas. A inveja das suas colegas era tão grande, que não descansavam se não passassem as aulas a torturá-la. Sem que ninguém se apercebesse, iam destilando o seu veneno, para que Carolina perdesse a cabeça, e consequentemente a razão. Afinal, toda a escola secundária sabia porque tinha perdido o ano anterior: tinha sido internada num hospital de malucos. Na sala onde tinham aulas, com três janelas do lado esquerdo, paredes horrivelmente brancas, secretárias entre madeiras claras e escuras, pois eram antigas. As cadeiras tinham ferros verdes e madeira clara. O quadro chiava cada vez que se passava o giz, e o pó voava até pousar suavemente no maior espaço que conseguisse. Carolina era nas últimas carteiras. Partilhava a carteira com Guilherme, e ele era o que melhor se apercebia do tormento de Carolina. Tentava acalmá-la e não deixá-la perder a razão. Mas Carolina tinha voz para se defender, e tinha ainda dois braços e duas pernas, prontos para serem usados nos corpos de algumas daquelas meninas, que certamente se iriam defender a puxar cabelos.
Um dia, na primeira aula da manhã, pelas oito horas e meia, estavam todos em sentido perante a professora de Geometria Descritiva. Uma senhora que parecia um general, que aparentava uns 65 anos, mas que certamente era mais nova. Tinha os cabelos brancos, e usava uma bata igualmente branca, para não se sujar com os desenhos no quadro de giz, com as diferentes cores. Nessa aula precisou de material extra, para melhor explicar a matéria. Saiu então da sala, para ir tratar do que lhe faltava. Carolina aproveitou de imediato a ausência da professora, para começar a falar com Guilherme, porque ambos tinham chegado quando tocara para dentro, e com aquela professora, ainda nem tinham tido tempo para trocar um “bom dia”. Entre umas e outras palavras, Guilherme conta-lhe uma boa novidade. Com um sorriso extremamente verdadeiro e brilhante, por impulso, Carolina abraça-o. Da mesa da frente voam umas palavras desagradáveis em direcção a ela:
- Pois é. Ela não deve ter carinho em casa, tem necessidade de se abraçar a todos.
De imediato percebeu que as palavras eram para si, e pergunta a Sara se isso era para ela. Com um sorriso malicioso, e expressão de gozo a resposta é:
- Porquê? A carapuça serviu?
Carolina perdeu a calma e a serenidade que os seus amigos rapazes tanto se esforçavam para que ela percebesse. Diziam-lhe que as raparigas eram muito complicadas, e que uma coisa pequena, na cabeça delas, era um monstro que originava logo discussões. Levantou-se calmamente da cadeira, e pôs-se em pé á frente de Sara. Disse-lhe:
- É bom que seja a ultima vez. E que isto te sirva de exemplo.
Fez-se um silêncio constrangedor que era absorvido pelas paredes incrivelmente direitas e brancas. Toda a gente esperava um estalo nas faces rosadas de Sara. Ou que lhe puxasse os cabelos, ou que a insultasse. Em vez disso, chamou-a para olhar para si. Aproximou-se de Guilherme, e puxou-o para se levantar. Sem ele contar, sufocou-o num beijo, que secretamente ele esperava há muito tempo. Entretanto entra Pedro, atrasado. Ela pára o beijo, e corre na sua direcção. As cabeças de todos os colegas de turma perseguem-na. Ela agarra Pedro, e beija-o ainda com mais vontade. Guilherme fica boquiaberto olhando aquela situação. Ele, e toda a restante turma. A professora entra sem bater, e eles largam-se imediatamente, ainda que Pedro não percebesse o que se estava a passar. A inveja das colegas de turma explodiu nos seus rostos. Ficaram extremamente zangadas, todas elas. O trio de rapazes que andava com Carolina, era o mais giro da turma, e por sua vez, dos mais bonitos da escola inteira. Espumaram de raiva, e os seus olhos estavam vidrados na entrada da sala, onde se tinha passado tudo. Já no lugar, Carolina diz-lhes:
- Que pena! Não é para todas!
Ficaram ainda mais furiosas. Mas, Carolina ainda se achou no direito de acrescentar:
- Da minha vida sei eu.
A professora já nervosa com o burburinho na sala, berra para instalar o silêncio, e se aperceberem que não era uma professora qualquer que ali estava, era ela. A aula decorreu na perfeição. Mas quando tocou a campainha, para saírem da sala, Pedro e Guilherme foram logo atrás de Carolina. Francisco não estava, se não, certamente também tinha sido beijado. Pediram-lhe para explicar o que tinha sido aquele momento tão surreal. Carolina não tinha justificação para explicar o sucedido. Tinham sido os seus primeiros beijos. Ali, para enfurecer as suas colegas. Nunca tinha tido confiança em si própria para o fazer. Para beijar alguém, ou para se deixar apenas ser beijada. Desculpou-se dizendo que tinha sido uma brincadeira, para elas não a chatearem mais. Guilherme queria ter ouvido outra resposta, mas contentou-se com aquela. Não a perturbaram mais com o assunto. Deixaram aquilo na sala. E, com certeza, havia uma turma inteira a falar do assunto. Eles podiam continuar amigos como antes, sem que o beijo mudasse alguma coisa. A felicidade de Carolina era incrível. Tinha tanto medo de ser rejeitada quando fosse beijar alguém, e nada disso aconteceu. Ambos se envolveram com ela, em frente a toda a turma, e deixaram-na desfrutar o momento. Não sabiam que era a primeira vez que os lábios dela tocavam noutra pessoa. Para o inicio de uma nova fase, a fase das paixões e das sensações, tinha se desenrascado muito bem. Aliás, ambos tinham gostado. Mas o assunto morrera ali. Apesar de Guilherme querer algo mais, por amor; e de Pedro também querer, mas apenas por atracção e desejo, esqueceram o sucedido e mantiveram-se como antes. Na escola toda a gente ficou a saber, e juntando esse episódio, ao do seu internamento, foi rápido para estar na boca de toda a gente, que tinha feito o que fez porque era desequilibrada! Não se importou. Os seus amigos da sua turma e os da turma do ano anterior estavam do seu lado, isso era o realmente importante. Não o que centenas de outras pessoas coscuvilheiras diziam, ou melhor, não o que muitas mulheres comentavam. Nem sabiam da história completa.
Carolina estava nas nuvens. Nesse dia não ouviu mais nada nas aulas, nem tão pouco o que os amigos lhe falavam. Estava num lugar distante, agora que se sentia como se tivesse subido um andar. Todas as raparigas da sua idade já tinham beijado alguém, e ela não. Apesar de saber que muitos rapazes a desejavam, sentia-se feia e gorda. E, nada a fazia mudar de ideias. Mas, aquela coragem de lhes tocar nos lábios, de sentir a sua respiração de perto, de sentir as suas bocas, as suas línguas, fazia-a levitar; como se tivesse concretizado o seu maior sonho. O seu corpo estava em todas as aulas, a sua mente vagueava por entre a imaginação e o real, provocando-lhe, por vezes, um sorriso inconsciente.
Se até aí as suas atitudes pouco tinham de normal, a partir daí a tendência foi sempre a piorar. Tinha um feitio complicado, desde sempre. Mas, aqueles dois beijos inesperados foram o arranque de uma nova fase da sua adolescência. A motivação que tinha ao início para o sucesso escolar, perdera-se de novo. O que a preenchia e a fazia querer viver era arriscar, inovar; viver tudo o que até aí tinha perdido. Sem consequências. Apenas viver. Tinha necessidade de se afirmar perante os outros, esse era o principal motivo… apesar de na sua cabeça, na maior parte das vezes, se desculpar com outras coisas. Em casa transmitia á mãe que era a adolescente mais correcta da sua idade, estudava, raramente pedia para sair (porque na maioria das vezes fugia sem que a mãe desse por isso), ajudava nas tarefas domésticas. Fazia tudo o que faz uma boa filha na adolescência.

Capitulo IV

Perder-se por completo estava a um passo! Não tinha interesse por nada. Sentia a falta do pai, de ter uma família normal, de ter amigos verdadeiros. Claro que isso não desculpa a sua própria decadência, mas para ela, ajudava. Não tinha auto-controlo, deixava-se levar. Influenciada era pouco para o comportamento que apresentava. Apesar de aparentar uma imagem perfeita em casa, não era isso que correspondia á realidade. Num deslize, a mãe de Carolina apercebeu-se de que não era tudo tão fácil como a filha descrevia. Também pelos seus antecedentes, e com medo do futuro, a mãe preferiu prevenir-se e pedir apoio ao psicólogo da escola. Se calhar, a o diagnostico de bipolar começava a fazer sentido, tais eram os seus extremos de disposição.
O amor não escolhe idades, já diz a célebre frase. Mas também não escolhe a aparência, o interior… muitas vezes limita-se a aparecer, sem justificações, apenas vendo como as pessoas lidam com esse sentimento. Amar tem muitas vantagens. É um sentimento lindo, que muitas vezes modifica as pessoas. Foi exactamente isso que aconteceu. Carolina, para ser aceite por Gonçalo tinha que mudar-se por completo - emagrecer. Gonçalo era se não o rapaz mais desejado da escola, dos mais cobiçados. Inesperadamente, Carolina viu nele o amor. Tinha um rosto lindo e um sorriso que invejava muitos rapazes. Com o seu ar angelical, e as covinhas nas bochechas, conseguia, quase sempre, tudo o que queria das raparigas. Era dos finalistas do curso de Ciências. Com a sua auto-estima tão em baixo, era quase impossível conquistar um rapaz daqueles. Já o admirava de longe há algum tempo. Sempre que podia, ia para perto para conseguir ouvir a sua voz, as suas conversas. A atracção física que tinha começado por existir, avançava para amor, e um amor difícil de controlar para uma adolescente de dezasseis anos.
Carolina tinha começado a afastar-se dos rapazes com que se dava bem na sua turma. Eles queriam coisas que ela não podia dar, e vice-versa. Desde o beijo aos dois, que as coisas começaram a evoluir de forma estranha. Nunca mais fora a mesma coisa. Assim sendo, Carolina optou por se reaproximar dos seus amigos da turma anterior.
Aconteceu sem ela contar, mas ainda com a cabeça a latejar sentia-se feliz. Carolina estava deitada no chão da escola, imóvel. Antes do sucedido, ela e Benedita estavam sentadas num banco debaixo de umas árvores enormes. Benedita era muito pálida, e tinha o cabelo rigorosamente cortado e liso, loiro. Estavam a conversar sobre umas roupas que faziam sobressair os tons de cabelo, quando Carolina levou uma bolada na cabeça, e caiu do banco para o chão, onde pareceu que desmaiou. Na realidade desfaleceu por instantes, mas depressa recuperou a consciência. Quando abriu os olhos, tinha a cabeça de Gonçalo mesmo em cima da sua, com um ar bastante preocupado. Sem demoras, pediu-lhe desculpa. Elas estavam muito próximas do campo de voley onde ele jogava com os amigos. Foi sem intenção. A sua cabeça batia muito acelerada, nem tinha percebido ainda o que se estava a passar. Só passava a mensagem de que ele estava ali, preocupado com ela. Ignorando que a sua preocupação era porque tinha sido o autor do incidente. Gonçalo dobrou-se e pegou nela ao colo dizendo:
- É melhor levar-te á enfermaria.
Ela tentou sair, dizendo que estava tudo bem. Pesava cinquenta quilos! Como ele podia com tanto peso. Carolina era muito pesada para ser transportada ao colo. Queria livrar-se daquilo rápido, para que ele se esquecesse de como era pesada. Estava embaraçada, e preocupada. Pensava a todo o instante que tinha que fazer jejum o resto da vida, para prevenir o que estava a acontecer naquele momento. Ele não a soltou, dizendo que tinha sido o culpado, e agora ia ver se estava tudo bem com ela. Ao mesmo tempo que ela achava que era um sonho, estar no colo dele era maravilhoso. Pensava em tudo o que tinha comido nos dias anteriores, e que estava a fazê-lo quase não conseguir com o peso dela.

Capitulo V

Dias depois daquele momento na enfermaria, Gonçalo foi ter com Carolina ver se ela estava melhor. Foi uma vez, foi outra, e passado alguns dias, os dedos das mãos já não chegavam para contar as vezes que se tinham falado aquela semana. Carolina estava radiante, aquilo parecia uma alucinação! Pensava “a bola na minha cabeça foi a melhor coisa que me aconteceu”. Vivia aquelas pequenas conversas nos intervalos das aulas, como se fossem eternidades. Na verdade, Carolina não sabia, mas não o amava. Não tinha capacidade para o amar. Tão nova, tão ingénua. Mas, o problema nem era esse. Ela não gostava dela própria. Na sua cabeça nenhum rapaz iria olhar para si, apesar de na verdade, muitos não olhavam só, mas apaixonavam-se também por ela. Esses rapazes que nutriam alguma coisa por ela, Carolina enganava-se a si própria, desculpando-se sempre com “devem estar enganados!” ou “gostar de mim? não é possível”. Uma meta complicada de atingir era Gonçalo. Era do décimo segundo, e muitas raparigas gostavam dele. Para se martirizar ainda mais, no seu inconsciente, decidiu que iria gostar dele. Ora, ele nem sabia da existência dela, como se poderia apaixonar por ela? Obviamente que a ia ignorar, e nem dar pela presença dela. O que ia fazer com que ela ainda se sentisse mais inferior. E era isso mesmo que ela queria. Sentir-se cada vez mais insignificante, para deprimir e continuar com a sua dieta maluca até atingir os seus objectivos. Carolina fazia aquilo instintivamente. Não de propósito. A sua cabeça já estava treinada, e era perita em arranjar desculpas para fazer com que ela se sentisse mal, para assim, conseguir emagrecer cada vez mais, e, no seu conceito de beleza se tornar linda. Como que uma manequim ou até as actrizes de cinema. Todas elas eram definidas, bonitas… perfeitas! Porque é que Carolina também não podia ser?
Após dois meses e meio, eis que Gonçalo surpreende Carolina. No banco onde ela estava sentada quando levou com a bola na cara, ele aparece-lhe com um malmequer arrancado dos jardins atrás da escola. O rosto de Carolina logo se iluminou. Mas não foi por isso que deixou sequer que a cabeça lhe desse tréguas, e a deixasse desfrutar do momento. Enquanto ela girava a flor com os dedos polegar e indicador, e Gonçalo a olhava fixamente a cabeça já estava a bombear perguntas e a dar as respectivas respostas. “Ele deu-te essa flor porque reparou que já emagreceste três quilos. É um incentivo. Vê se continuas. Mas tenta controlar-te melhor. Porque três quilos num mês e meio e pouco” – pensava ela. De seguida ele pegou-lhe na mão que tinha o malmequer, e através da mão e do braço, fez com que Carolina se virasse toda de frente para ele. Aí, sem se ensaiar muito, pois tinha medo de se arrepender e não fazer o que queria há tanto tempo, e beijou-a. Fechou os olhos e compenetrou-se no que estava a fazer. Na cabeça de Carolina havia um bichinho de felicidade que a fez vibrar, e continuar o beijo. Não recusou, não se intimidou. Continuou apenas. Sentiu-se tão bem, como se já o tivesse beijado várias vezes. Como se até fosse normal. Não sentiu nervos, e por instantes a sua cabeça ficou desocupada de qualquer tipo de pensamento, e deixou-se apenas aproveitar o momento. Estava incrédula. Com tantas raparigas lindas e magníficas que havia na escola, porque ele a estava a beijar? Mas afastou essa ideia com rapidez, e saboreou a boca dele. Sabia de cor o desenho dos seus lábios, conhecia os poros com barba, sabia a cor dos dentes, as covinhas do sorriso. Já o conhecia fisicamente tão bem, que era capaz de saber pormenores e tiques dele, que ele talvez nem se apercebesse. Só de o observar. Depois de se sentir a sonhar, Gonçalo larga-a de repente, e fica envergonhado a olhar para ela. Ficaram em silêncio. Tanto um como outro não sabiam as palavras certas. Talvez se soubessem que aquilo iria acontecer, preparassem um discurso! Mas daquela maneira inesperada e imprevista, a boca de ambos bloqueou. Como se tivessem ficado sem saliva e a língua tivesse morrido. A boca estava paralisada. Parecia que ainda saboreava o beijo já terminado. Na cabeça de Carolina explodiam ideias sobre o que fazer. Deixou-se estar. Em silêncio. Ambos se olhavam. Sem perguntas, sem afirmações. Olhavam-se nos olhos, bem fundo; deixando suas bocas espantadas com o sucedido. Gonçalo, embora Carolina não soubesse, estava a ganhar coragem para fazer a segunda coisa. Ela era diferente. Por isso, é que de tantas “miúdas” que gostavam dele, ele queria apenas uma. Ironia do destino. Antes de tirar o cocas do bolso, deixou-se aproveitar mais um pouco daquele silêncio. E, finalmente percebeu aquela frase tão conhecida “um olhar vale mais que mil palavras”. Percebeu que ela gostava de silêncio, de observar apenas. De se sentir assim, distante do mundo. Existia apenas ele no seu campo de visão. E bastava. Aliás, segundo o seu coração, ou a sua cabeça, não sabia, bastava apenas aquilo, assim como estava para ser feliz.
- Posso te contar uma coisa? – Disse ao fim de dez minutos em silêncio.
- Diz! – Respondeu com um sorriso.
- O meu pai antes de morrer, esteve muito doente. Esteve vários meses internado até. E, algumas vezes em coma. Com isso, aprendi que o melhor de se partilhar é o silêncio. Eu falava-lhe, ele não me respondia. Ou porque não tinha forças, ou porque estava a dormir, ou mesmo porque estava em coma. Para mim era muito complicado falar e não obter resposta. Os médicos diziam para eu lhe falar, que ele ouvia-me, onde quer que estivesse. Eu acreditava nisso, e acredito. E por isso, falava-lhe. Mas, o tempo que guardava para estar com ele em silêncio, para estar na mesma situação que ele, deixando apenas a minha mão passar-lhe no cabelo e na cara sob o pretexto de festinhas, era o melhor.
Gonçalo interrompe-a:
- Sinto muito. Tu não merecias…
- Eu não quero que digas isso. Não te contei isto para te sentires mal, ou para te comoveres com a minha história. Estou a tentar mostrar-te como o silêncio, entre duas pessoas que se gostam, é lindo. Um momento mágico, que tem que se saber aproveitar.
Quando Carolina disse “entre duas pessoas que se gostam”, Gonçalo não pensou em mais nada. Perguntou-lhe:
- Entre duas pessoas que se gostam? Porquê? Gostas de mim?
Olhou para o chão, desviando o seu rosto, como se tivesse dito uma coisa que não devia, tinha tido a mesma reacção que uma criança de cinco anos que tinha feito uma asneira, e que o sabia. Estava envergonhada com o que dissera. “Como é que eu, Carolina, me acho no direito de dizer isto ao rapaz mais giro da escola? Eu devo estar a alucinar… ele vai-se rir na tua cara. Depois não chores, eu avisei” pensou. Carolina balbuciou, não conseguindo dizer uma única palavra. Gonçalo, que se estava a aperceber, tirou o cocas do bolso, e fazendo-lhe uma festinha na mão, mostrou-lho.
- Conheces este jogo?
- Claro! Jogava-o quando tinha 10 anos para aí. Porque mo estás a mostrar?
- Quantos queres?
- Quero três, é o meu número preferido. – Respondeu Carolina. Gonçalo fez o movimento com o cocas correspondente ao três. Depois prosseguiu:
- Escolhe uma cor.
- Verde, é a minha favorita.
Gonçalo abriu a parte correspondente ao verde. E, sem lhe mostrar, disse:
- Vou ler o que está aqui… - Bloqueou uns segundos, ficando a pensar se deveria inventar qualquer coisa á pressão, ou simplesmente deixar-se fluir… não poderia acontecer nada demais. Era um simples “sim” ou “não”. Não era o fim do mundo. E caso a resposta fosse não, o mundo não iria acabar, e ele seria persistente.
- Queres namorar comigo?
- O quê?
Ele respondeu com um sorriso envergonhado:
- É o que diz no cocas que eu fiz especialmente para ti! Queres namorar comigo?

Capitulo VI

O problema de Carolina com a gordura mantinha-se. Já estava nos quarenta e cinco quilos. E, a tendência era para emagrecer ainda mais. Namorava com Gonçalo há dois meses, relativamente pouco tempo, para que tentasse fazer tudo o que ele queria. Como a expressão vulgar diz “é demais para ti”. Era exactamente isso que Carolina pensava. “Tenho duas hipóteses: ou faço tudo por ele, e ele não me deixa porque tem tudo comigo; ou, me armo, e acho-me bonita e faço-me de difícil” pensava ela. Não o queria perder. Por isso, sujeitava-se a qualquer coisa. Ela sabia perfeitamente que ele era único, mais ninguém iria olhar para si! Sabia isso, que não correspondia á verdade. Apesar de que, cada vez começava a ser pior, pois, com o emagrecimento dela, o corpo perdia as formas, e a cara o brilho. Começava a parecer um esqueleto ambulante. Justificava-se ao namorado que comia, e até tomava vitaminas, mas não sabia o que se passava, só conseguia emagrecer inevitavelmente. Ele gostava do seu interior, com ele, ela aparentava ser outra coisa. Não era a descontrolada e obsessiva por dietas quando estava com ele. Era uma boa aluna, culta, com objectivos, estudiosa, cheia de qualidades merecidas apenas aos melhores.
Gonçalo começava a ficar cada vez mais desiludido. Cada vez tinha menos vontade de estar ao lado de uma pessoa que, apesar de ter um excelente interior, não gostava de si própria.
Gonçalo ligou-lhe e pediu que se encontrassem no café por baixo de casa dela. Ela ficou um pouco preocupada, já que, não era costume encontrarem-se ao domingo, aquela hora. O domingo, segundo a família do seu namorado, era para repousar, estudar, para recuperar de possíveis noitadas na sexta e sábado e para estar com a família. Mas, Gonçalo, com certeza tinha inventado uma boa desculpa para se escapar ao lanche em casa da sua tia, com toda a sua família da parte do pai. Carolina ainda estava no seu quarto a vestir-se, quando Gonçalo já estava lá em baixo, no café Lírio. Olhou para o guarda-fatos e não viu nada suficientemente bom para disfarçar a sua gordura excessiva. Era tudo demasiado justo, e assim ele iria aperceber-se que ela teria que emagrecer pelo menos vinte quilos. E ela, iria sentir-se muito mal, e chorar á frente dele. Dirigiu-se ao espelho da casa de banho, ainda de toalha de banho. Não tinha espelhos no quarto, porque a tentação de estar sempre em frente a ele, era enorme. E, sempre que se observava, encontrava problemas no seu corpo. Pele descaída e como se estivesse murcha. O cabelo, ou melhor, a falta de cabelo, o enfraquecimento dele evoluía cada vez mais no sentido de ficar careca. Um dia, ao lavar os dentes, apercebeu-se de que eles estavam a abanar. Não todos, mas alguns. Os pelos que tinha em todo o corpo, tornavam-se mais fracos, e a penugem do corpo era quase nula. E o pior, as banhas de quando se sentava. Os pneus que se enrolavam por toda a sua barriga, e que eram inevitáveis. Carolina estava a tornar-se um bicho, sem que se apercebesse. E não havia nada a fazer. O seu corpo estava delineado apenas por cima dos ossos. Não havia mais contornos. Não havia curvas. Quase não tinha peito. E as coxas e rabo eram do tamanho de uma criança de dez ou onze anos. Mas, apesar das roupas soltas e largas que vestia, notava-se o seu emagrecimento nas mãos, na cara. Notava-se a cada vez maior falta de cabelo. As unhas que lascavam onde quer que tocassem. A cara quase não tinha bochechas, as mãos eram apenas ossos encaixados uns nos outros. Vestiu umas calças de ganga, e calçou umas sapatilhas pretas. Para cima, pegou na camisola cinzenta que tinha, de carapuço e bem larga, quase parecia uma camisola de rapaz, e vestiu-a. Foi de novo á casa de banho, prendeu o cabelo para que não se notassem as cada vez maiores falhas de cabelo, e lavou os dentes com muita suavidade com medo que, com alguma escovagem mais brusca, algum lhe caísse. Não quis descer de elevador, aliás nunca descia ou subia de elevador. Ia sempre por escadas para queimar as calorias dos copos de água que havia bebido antes. Gonçalo estava sentado no passeio em frente ao café. Quando Carolina chegou, olhou-a com pena. Pela primeira vez, quando a olhou, não sentiu borboletas no estômago, ou um arrepio de felicidade. Sentiu pena… de não poder controlar o atentado que ela estava a cometer contra ela própria. Embora tentasse sempre disfarçar que não se passava nada com a sua namorada, daquela vez não dava mais. Beijou-a, e puxou-a para que se sentasse ao seu lado, no passeio. Carolina sentou-se e ele falou:
- Não adianta convidar-te para lanchar no café, porque já sei que não vens…
- Por acaso já lanchei! A minha mãe obrigou-me a comer torradas e a beber um copo de leite…
- Por acaso? – disse num tom desconfiado e irritado – Por acaso nada. Por acaso eu ando a evitar há bastante tempo falar neste assunto. Mas não dá mais Carolina! Eu não posso ver, e não interferir. Não posso ficar indiferente ao ver que te estás a destruir.
- O quê? De que estás a falar? Não estou a perceber! – Disse Carolina preocupada com o tema que a esperaria. Com certeza iam falar novamente do seu peso! Seria possível? Ela sabia que estava gorda. Ele apenas dizia que ela era esquelética porque não queria que Carolina se sentisse mal, pensava ela.
- Estou a falar dos quilos que subitamente te fugiram, sem que fizesses nada por isso. Na verdade inventas-me desculpas para não comeres, e depois queres que eu acredite que os teus quilos se esvoaçaram do teu corpo. Tu tentas disfarçar com essas roupas, porque com certeza não queres que se vejam as banhas que não tens no teu corpo! Eu gosto de ti. Mas não posso compactuar com isso.
- Eu estou gorda. A sério. Eu sei disso! Por isso pára de falar nisso.
- Não! Tu estás é com um problema nessa cabecinha. O teu problema não é de gordura, é de cabeça.
- Estás a insinuar que eu sou maluca? – diz Carolina irritada.
- Não! Isso são palavras tuas. E mais, eu não estou a insinuar nada. Eu estou a afirmar. Estás muito magra, e assim não podes continuar. E não te adianta dizeres que vais comigo lá dentro e comes 5 bolos, como uma pessoa que não vê comida há dias. Porque eu sei perfeitamente que mal tenhas tempo, vomitas.
Carolina começou a chorar convulsivamente.
- Deita-te aqui princesa. Eu só quero o teu bem.
Carolina deitou-se sobre o passeio, com a cabeça no colo de Gonçalo. Ele observava-a a chorar. Num silêncio que o fez recordar o pedido de namoro. Concentrou-se tanto no silencio entre os dois, pensando na forma bonita que é amar em silêncio. Ela chorava como uma criança, ele olhava-a como se não lhe pudesse falar. Era como as conversas que Carolina lhe contara que tinha com o seu pai. Ela falava, ele não podia responder. No caso de Gonçalo e Carolina, as coisas até eram semelhantes. Carolina podia responder a tudo que Gonçalo lhe dissesse, mas, não conseguia compreender nada que ele dissesse. Por isso mesmo, o bom, era ficar em silêncio, assim, olhando um para o outro, e evitando que o pensamento fugisse para problemas ou dúvidas. O amor deles estava assim representado num silêncio, a coisa mais pura que existia entre ambos. Enquanto se olhavam, Carolina havia parado de chorar. Gonçalo limpou-lhe as últimas lágrimas com as suas mãos. Depois, deixou-a descansar do choro assim. Olhando-se apenas! Com ela, ele aprendera que os namoros se enchem de palavras que muitas vezes são desnecessárias. Todas as pessoas têm um medo excessivo de ficarem sozinhas, e de não ter com quem comunicar. Com o tempo, Gonçalo apercebeu-se de que esse não era o problema de Carolina. Ela não tinha medo de ficar sozinha, e por isso mesmo, gostava de partilhar silêncios com as pessoas que gostava. Apenas deixando-se estar, a aproveitar a ausência de ruído ou a concentração em coisas menos importantes. O óptimo era a centralização de todos os sentimentos no coração. E, para que isso acontecesse, não se podia pensar em mais nada. Para se conseguir manter o pensamento apenas no amor, não se pode observar nada ou dizer nada. Tem que se concentrar todas as energias no amado, e deixar assim que o momento se desenrole… apenas a sentir aquele calor que é o amor.

Capitulo VII

- Gostas de mim? – ecoou desfocada a voz de Gonçalo na cabeça de Carolina. Ela estava estendida no chão. Tinha desmaiado, mais uma vez enquanto andavam para a sala de aula. Sem avisar, sem pedir ajuda. Antes de dar o próximo passo, caiu redonda no chão. Sem poder sequer ter protecção.
Ainda não estava restabelecida, quando a pergunta de Gonçalo lhe entra pelos ouvidos, sem forma evidente. Era estranho, mas ao mesmo tempo, bom. Acordava com palavras do seu amor, a perguntar se ela gostava dele. Como se tudo dependesse dela. Como se a felicidade de ambos, estivesse nas mãos pálidas e magras de Carolina.
- Claro que gosto. És o meu amor em silêncio!
Carolina puxou o seu corpo para cima, para se colocar em pé. Depois, tentou beijá-lo, quando ainda estava sentada, mas ele fugiu para trás. Pegou nela ao colo, e sentou-a no banco.
- Não parece. A nossa conversa de ontem afinal serviu para quê? É claro que não voltaste a comer desde então.
- Claro que comi. Eu quero que estejamos bem. E se para isso tenho que comer…
Gonçalo, interrompendo-a, diz-lhe:
- Estás a fazer isto por mim? Em vez de o fazeres por ti? Enfim…
Olhou o céu. Estava limpo e azul. Tinha apenas nuvens desenhadas nele. Pareciam bocadinhos de algodão cuidadosamente pousados naqueles lugares. Respirou fundo e continuou:
- Eu desisto de tentar pôr-te coisas na tua cabeça… se quiseres continuar a namorar comigo, vamos agora ao médico, ás urgências. Sim, porque o teu caso não é menos que uma urgência.
- O quê? Não posso faltar ás aulas. E mais… - ganhou coragem e uma vez sentiu-se orgulhosa e sem medo das consequências – Eu é que sei o que faço da minha vida. E se só namoras comigo se eu for ao médico, é porque não gostas realmente de mim! Por isso, esquece-me. Estou farta de te ter atrás de mim a dizer-me que tenho que comer. Eu é que sei quando tenho fome e se me apetece comer. Não és tu!
Desiludido, mas calmamente, responde-lhe:
- Realmente não sou eu que mando no que comes nem no que deixas de comer. Comes o que te apetecer, quando te apetecer. Só espero que nunca me liguem para te ir visitar a uma cama de hospital quando tiveres vinte quilos. E ficas a saber, não vais comigo ao hospital, eu vou arranjar maneira de ires na mesma, com outra pessoa. Toda a gente na escola já se apercebeu que não comes. Olham para ti com pena. Porque tu, por causa de um capricho, e da porcaria das manequins, queres evaporar-te.
- Eu é que sei. Ficamos assim. Não me procures mais.
Virou as costas, e, perfeitamente bem dirigiu-se para a sala. Gonçalo estava irritado. Queria ajudá-la. Afinal, gostava mesmo dela… de verdade. Procurou o nome Teresa, a mãe de Carolina, no telemóvel e pôs a chamar. Quando atendeu, pediu-lhe para que fosse á escola, naquele preciso momento. Preocupada, a mãe de Carolina dirigiu-se para lá o mais rápido possível. Foram ao bar da escola, e sentaram-se nas cadeiras verdes de publicidade. Ele começou:
- Sítios como este, a Carolina evita. Não lanchamos, não jantamos fora como os outros casais normais. E, se o fizermos, sei perfeitamente que ela vai, mal eu fique distraído, vomitar em algum lugar.
- A minha doença e os meus tratamentos não me deixam muito tempo para que me consiga aperceber totalmente disso. Mas isso não é novidade para mim. Já tinha reparado que ela tem emagrecido muito. Só não sei o que fazer. Não queria interná-la de novo. Preciso de uma ajuda, uma orientação!
- Por mim, chamava agora o inem, iam buscá-la á sala. Depois no hospital viam o que lhe fazer.
Foi o que fizeram. Chamaram a ambulância, e os homens colocaram-na numa maca e levaram-na. No caminho, Carolina ia deitada, e viu Gonçalo junto da sua mãe. Gonçalo fez sinal de que os dois homens parassem junto dele. A mãe de Carolina beijou-lhe a mão. E Gonçalo disse-lhe “é para teu bem… senão, não o fazia!”. Ela ia amuada, e zangada com o mundo, virou a cara, e continuou a ir.

Capitulo VIII

Carolina estava na mesma situação que uns meses antes. Apesar de ser apenas a segunda vez, tudo o que se estava a passar, vinha-lhe à cabeça como um déjà vu, como se já tivesse vivido aquilo tudo. A verdade é que sim! Aquilo já se tinha passado, noutra altura da sua vida, por outras circunstâncias e com outros resultados… porque o que ia acontecer dali para a frente, Carolina ainda não sabia.
Carolina estava sentada numa cadeira, com uma médica por trás de uma secretária, em frente a si. O gabinete era todo branco, paredes, uma cama, a secretária. Era assustador, tudo tão pálido e sem vida. Estar ali já era um sacrifício. Podiam ao menos utilizar outra decoração, para que ir ao hospital não fosse tão doloroso como já era. Isso pensava Carolina, porque na verdade, o branco transmitia também limpeza e eficiência. E, num hospital, naturalmente que as preocupações não são com a decoração, até porque o hospital é um local de passagem! Sim, de passagem: ou se regressa á vida, ou se encara a morte. Carolina estava absorvida nos seus pensamentos, quando a médica a interrompe, após ter visto a sua ficha clínica.
- Parece que o teu internamento não teve sucesso… Aliás, tirou-te talvez de um problema e fez-te nascer outro. Queres falar sobre isso?
- Não! Correcção: o internamento não me trouxe coisas novas, saí de lá como tinha entrado! Não me fez exactamente nada.
- Não fiques irritada. Toda a gente á tua volta quer apenas o teu bem. E, eu aqui, também só te quero ajudar nesse problema com a comida.
- Eu não preciso de ajuda de ninguém para comer. Eu sei muito bem o que vejo quando olho ao espelho…
- E o que vês? – Interrompe-a a médica.
- Vejo uma coisa feia. Gorda! E com muitos outros defeitos. Mas não quero falar disso. Quero apenas ir-me embora, para casa. A minha mãe sabe cuidar de mim… aliás, eu já tenho idade para cuidar de mim sozinha! Posso ir?
- Estás enganada. Não sabes cuidar de ti sozinha. E, já estiveste internada, deves saber como as coisas funcionam. Mas desta vez as coisas vão processar-se de maneira diferente…
- Quero ir embora… não preciso da ajuda de ninguém! – diz Carolina sem esperar que a doutora acabe.
- Desculpa chatear-te. Sei que isto não faz parte dos teus planos. Mas desta vez, vais ser internada, por tempo indeterminado. Primeiro vais ficar cá no hospital, porque estás muito fraca, e vai ser controlada toda a tua alimentação. Depois, irás para um hospital psiquiátrico, não o que já conheces, mas outro.
- Eu não quero. Eu não preciso! Eu não vou… - Começa a chorar sofregamente.
A médica levanta-se da sua cadeira branca e dirige-se á porta. Chamou por uma enfermeira que estava no corredor. Parecia que essa enfermeira estava apenas á espera de novas ordens da médica. Foi tão rápida a ir buscar Carolina, que parecia que já sabia tudo o que se passava. Na verdade sabia mesmo. Quando se olhava para Carolina, via-se logo que tinha tudo menos normalidade. Não podia ser uma adolescente normal, se tinha umas olheiras muito marcadas, um cabelo fino e frágil, já para não falar que em algumas zonas da cabeça o cabelo era quase inexistente. A sua pele era seca e amarelada, as unhas estavam quebradas. E, o mais evidente, parecia que era um esqueleto que estava á vista das pessoas, não uma rapariga. Carolina sabia bem que não podia fugir. Seguiu a enfermeira que estava encarregue dela. Foram para um quarto, que para variar era branco, tendo apenas uma risca azul-bebé na parede. Tinha um lavatório antigo, em baixo de uma televisão presa no tecto. E, na beira da janela, existia uma jarra transparente vazia. A enfermeira tratou-a como se ela não tivesse alma, como se não pudesse responder ou não tivesse opinião. Pediu-lhe que se deitasse, e informou-a que ali, iria ter horas para comer, e ia ter que comer. Nem que tivessem alguém de vigia. Obviamente que isso seria insustentável, mas para primeiro impacto seria óptimo que ela pousasse os pés noutra realidade. Pouco tempo depois de se deitar na cama e de ligar a televisão, a enfermeira que a tinha apresentado o novo quarto onde iria passar certamente algum tempo, veio analisá-la. Tirou-lhe sangue e mediu-lhe as tenções. As veias encontraram-se rapidamente, estavam salientes na sua pele clara. Mas, quase pareciam secas. Saiu, sem lhe dirigir uma única palavra. Deixando Carolina de novo a observar a programação chata da tarde da televisão. Foi interrompida de novo, mas desta vez por uma auxiliar. Trazia um carrinho com várias coisas… tudo de comer! Carolina pensou imediatamente que ali vinha o seu martírio, e que ia ser difícil conseguir continuar sem comer. Ao ter a hipótese de escolha, decidiu comer duas bolachas Maria e um chá. Para quem se limitava a beber água já era um começo. Apesar de aquilo não chegar para a sustentar um dia inteiro. Com calma e paciência, haviam de conseguir recuperar Carolina, e fazer dela uma jovem linda e saudável.
No dia seguinte, pela manhã, Carolina teve uma visita inesperada. Era Gonçalo! Trazia-lhe um malmequer branco, como a primeira flor que lhe havia dado uns tempos antes. Sorriu-lhe, mas ela deixou-se ficar calada. A irritação e vontade de o matar do dia anterior, estavam mais suaves. Não que tivesse esquecido o que ele lhe fez! Ela tinha-a traído! E, ainda por cima, tinha envolvido a sua mãe naquilo. Não trocaram uma única palavra, até Gonçalo fechar a porta do quarto, e se ir embora. Ficaram-se apenas pelo olhar. Carolina tinha ensinado o quão importante era o silêncio entre duas pessoas que se gostavam. Gonçalo tinha aprendido a importância silêncio num amor. Olharam-se, e Carolina não tinha ódio no olhar. Mas também não tinha brilho. Era um olhar triste, com um pedido de ajuda subentendido, mas que Gonçalo não fora capaz de interpretar. Quando saiu, despediu-se com um demorado beijo na testa de Carolina. Sentiu-a bem, sentiu a sua fragilidade e o seu desespero. Estava ali, insegura e como uma criança pequena perdida. Tinha medo, e por vezes até parecia tremer. Ainda assim, mesmo apercebendo-se que ela não estava normal, preferiu ficar com as palavras para si, e trocar com ela a ausência de ruído, para se concentrar em enviar-lhe boas energias, para que ela tivesse uma rápida recuperação! Saiu sem olhar para trás. Deixou-a sem que ela tivesse tido tempo de pensar se lhe devia falar ou não. Nesse mesmo dia, á tarde teve a visita da sua mãe. O habitual era discutirem. Mas Carolina sentiu-se demasiado fraca para o fazer. Deixou-se estar calmamente deitada na sua cama, limitando-se a responder á mãe com “sim” e “não” a tudo o que lhe perguntava. Aquele cheiro a hospital, as paredes revestidas de branco, que a fazia pensar que tinha morrido e estava no céu. Todas as pessoas que a abordavam era para a controlarem ou para a mandarem comer. E, via as horas passar deitada naquela cama inútil! Por todo o acumular de coisas, sentia-se sem disposição para discutir com quem quer que fosse… mesmo que fossem os causadores de toda aquela tragédia que se tornava a passar na sua vida. Teresa saiu do quarto a chorar. Via novamente a filha numa situação de descontrolo, e nada podia fazer. Passava-lhe pelo pensamento que poderia querer matar-se de novo. Que tudo poderia recomeçar… e não sabia se teria as mesmas forças que uns tempos antes. Sabia que Carolina era especial, não era como todas as outras adolescentes. Tinha um interior diferente, e por, talvez, não saber lidar com isso, comportava-se como uma verdadeira maluca.
Entre dias iguais uns aos outros, Carolina tinha resolvido começar a escrever. Já tinha saudades de partilhar as suas ideias com alguém… neste caso, com as folhas de papel, que reencaminhariam as palavras para o seu pai. Era a única coisa que fazia, ler, escrever, ver televisão, dormir, e o pior: comer! E se descobrissem que vomitava, voltava a comer tudo de novo, até que não vomitasse. E quando Carolina se armava em teimosa, ou a anestesiavam com um calmante, e a comida ficava dentro de si, ou a colocavam a soro para repor energia. Pegou no bloco que tinha na estante branca ao pé da cabeceira de ferro brilhante da sua cama.
“Mais uma vez perdida. Sem rumo. Sem destino. Só eu aqui, no meio desta imensidão branca que me rodeia. Sem mundo, sem pés, sem ar. Como que uma marioneta nas mãos de outras pessoas, apenas porque o ser humano não tem capacidade nem autonomia para fazer o que quer da sua vida, quanto mais de se poder destruir sozinho. Quem diz que o homem é livre, mente. Porque nem pode controlar a sua própria vida! Sinto-me completamente vazia. Não tenho interesse por nada, não tenho existência…”
Pousou o caderno de onde o tinha tirado. Encolhida na cama chorou. Tentou que as suas lágrimas a limpassem de tudo de mal que a preenchia… de tudo de mal que tinha na sua vida, e que a fazia sofrer. Adormeceu, e de novo acordou. As coisas estavam iguais, nada de mudanças. Não era um sonho, não era ilusão. Estava ali, presa a uma cama, sem poder tomar as suas próprias decisões.
Passaram-se dias, e ao fim de uma semana e meia foi transportada para o Hospital Psiquiátrico. Não era o mesmo da outra vez. Neste havia rapazes e raparigas, e tinha tratamento personalizado, apenas porque era privado. Talvez isso lhe desse um melhor tratamento. Carolina quando chegou, foi revistada, e lembrou-se da última vez que isso tinha acontecido. Voltou a lembrar-se de como aquela situação a fazia parecer uma criminosa, e desprotegida. Pessoas a roubarem-lhe literalmente as suas coisas, e a guardarem numa caixa. Deixando-a sem fazer nada, sem sequer poder ter reacção aquele roubo. Acompanharam-na até ao seu quarto. Não era uma camarata. Ela já sabia, quem chega de novo a um hospital psiquiátrico, vai sempre para um quarto, isolado dos outros. Só mais tarde, e quando o tratamento avista progressos, é que pode começar a partilhar o quarto. Não que seja assassina ou que vá ferir alguém. Por precaução! Para não forçar o doente a nada que não queira. A nenhuma relação que o prejudique. Porque a revolta inicial faz com que as pessoas queiram ficar sozinhas. Assim foi. Carolina teve um quarto só para si, apesar de lá existirem duas camas. Outra semelhança que tinha com o hospital psiquiátrico anterior era as grades na janela que a faziam pensar continuadamente naquilo. Umas simples grades impediam-na de viver.
Este hospital tratava apenas de jovens. Adolescentes de ambos os sexos podiam recorrer aos serviços daquele hospital se tivessem problemas psiquiátricos. Teresa tinha-se informado, e apesar daquele hospital ser longe de onde moravam, era o mais qualificado para ajudar Carolina. O hospital onde Carolina tinha estado internada uns tempos antes, não lhe fizera absolutamente nada. Mantivera-a no mesmo estado, apenas camuflando o que se passava. Ali, Teresa achava que podia estar a chave de uma porta para uma nova vida para Carolina.
Na primeira semana Carolina não recebeu uma única visita, mas apenas porque não podia. Carolina tinha que ter um bom comportamento para ter como prémio ver as pessoas de que gostava. Era como um estímulo para se recuperar. Era teimosa, e comportar-se bem, para seu próprio beneficio não estava nos seus planos. Uma médica, a Dra. Rute, começou a cativá-la. Na verdade, Rute começara a afeiçoar-se a ela, logo desde a primeira consulta. Era uma rapariga extremamente inteligente, segundo a psicóloga. E, apesar de toda aquela nuvem de coisas más que a envolvia, tinha tudo para ser uma “garota de sucesso” como lhe chamava! A hora com Rute era a melhor hora do dia, e por vezes até prolongavam a conversa e os exercícios, porque ambas gostavam quando isso acontecia. Fazia bem a ambas. Rute não sabia se revivia a sua vida com aquela miúda. Na verdade, as suas vidas tinham semelhanças. Mas não podia ser apenas isso. Carolina era especial, e Rute sentia isso. Rute era alta e loira. Tinha uns cabelos compridos e fortes, que aparentavam um bom tratamento. A sua pele era pálida, e notavam-se algumas manchas de problemas de pele. Tinha uns olhos muito expressivos, e o rasgo da boca dava-lhe maior importância á cara. Passeava, tal como Carolina, um esqueleto, de que se orgulhava. Em tempos, também Rute tinha tido problema com comida. E, apesar de psicóloga e de cuidar de pessoas com o mesmo problema de Carolina, era inconscientemente maluca por dietas. Não se olhava para ela e se notava que era anoréctica. Era magra, estava no limite mínimo do seu peso. Dizia não se importar com isso, mas, na realidade, tinha uma obsessão doente pela comida. Coisa com a qual tinha aprendido a viver. Cuidava todos os dias de pessoas com problemas com a alimentação. Pessoas que morriam por causa disso. Sabia o mínimo que tinha de comer para se manter viva, e era isso que fazia. Dando de vez em quando, uma escapadela á casa de banho, se comesse algo que não deveria ter comido. Rute não queria deixar que Carolina se perdesse. Queria ajudar a que se levantasse de todos aqueles problemas, e a que não fosse uma pessoa como era Rute. Queria que Carolina aprendesse a lidar normalmente com a comida, mesmo sabendo, que na maioria dos casos de recuperação desse problema, a relação com a comida nunca chegava a ser normal.
Carolina era a única anoréctica naquele hospital. O que lá mais havia era depressão, fobia, histeria, esquizofrenia e abuso de drogas. Carolina exclusiva com aquele problema. Todas as outras pessoas tinham problemas semelhantes com a vida. Coisas que se podiam resolver, com força de vontade obviamente. Mas, assim como Carolina era a única, também André era. André tinha dezoito anos de autismo em cima de si. Os seus pais eram novos, e, na verdade, de vez em quando internavam-no ali, porque para alem de não saberem lidar com o problema dele, davam prioridade a outras coisas, principalmente aos seus trabalhos com grande importância a nível nacional. Apesar de serem várias vezes chamados á razão, por aquele hospital não ser um “depósito de pessoas”, desculpavam-se sempre com o piorar do estado do filho. Na verdade era um estorvo para ambos, e nenhum deles se queria dedicar de verdade ao filho. Tinham uma criada que o fazia por eles, mas, que mentalmente era limitada, e não tinha capacidade para tentar que ele se desenvolvesse. Já para não falar de que custou para se habituar há ausência de qualquer som por parte dele. Mesmo não tendo qualquer preocupação com o filho, havia uma coisa que se preocupavam em trazer sempre que internavam o filho. Contratavam uma empresa para lhe levar o piano, e pediam sempre permissão no hospital para o deixarem lá. A resposta era sempre positiva, já que o interesse fundamental daquela unidade daquele hospital era devolver a vida aos jovens, que tinham um enorme percurso á sua frente, depois de recuperados. O hospital compactuava com todas as coisas que melhorassem o estado do paciente. O que fazia bem a André era o seu gosto por piano. Era a única coisa que fazia e pela qual demonstrava interesse. Passava horas a tocar aquele instrumento, sem se aperceber do tempo passar. Ficava mudo, apenas mexendo os seus braços ao ritmo da musica que saía do piano. Parecia como um louco a libertar todas as suas energias naquele monstro preto, que o compreendia sempre, e o deixava criar! Era o seu melhor amigo, para quê falar, se com ele tinha tudo o que precisava?
Carolina reparou logo em André. Saltou-lhe imediatamente á vista, assim que entrou na sala de convívio a primeira vez. Cada pessoa concentrada nas suas coisas, havendo poucos que comunicavam. Faziam-no porque já tinham progressos notórios. André era moreno. Não apanhava sol, ate porque raramente saía das quatro paredes do seu quarto de casa, onde tinha o seu piano. Nem para as refeições saía de lá. Matilde, a empregada, levava-lhe tudo lá, pois se não ele não comia. No hospital, apenas saía da sala de convívio para o quarto, para dormir. E por vezes, até adormecia na sala. Colocavam sempre o piano naquela sala, para André estar perto de toda a gente, e para se habituar a partilhar o espaço, ainda que isso, nunca tivesse tido resultados. Continuava sempre no seu canto, sem ligar a nada que se passava. Fingia ser invisível, ou por vezes, que os outros eram transparentes. André era moreno apenas por genética. Aparentemente era um rapaz normal. Tinha cabelo castanho-escuro, muito liso. Os seus olhos eram enormes e transpareciam tristeza, segundo Carolina. Parecia que havia uma alma dentro dele que queria viver, e que o seu corpo não a deixava soltar-se. Mas, Carolina, não percebia nada de autismo, como poderia avaliá-lo assim? Ou uma pessoa, sem noções básicas do problema, conseguiria ver tudo mais claro? Desde que ali chegara, não ouviu um único som, ruído ou onomatopeia da sua boca. A sua barba era raramente feita, mas quando a fazia, ainda que mal, tinha logo outro brilho. Tinha uns dentes muito direitos e brancos, e a boca onde estavam inseridos, era muito bem desenhada. Os seus pais eram muito bonitos também.

Capitulo IX

Passaram-se três semanas. Carolina não teve nenhum contacto com André, até porque ele não se relacionava com ninguém. Tinha uma capacidade extraordinária de ignorar toda a gente que o rodeava, e tocar piano. Isso relaxava Carolina. Para ela, ainda não estava tudo bem, mas estava num bom caminho. Nesse dia, Teresa tinha sido internada num hospital. O seu tumor cerebral tinha tido os últimos dias, e matou-a. Tentaram tudo para a salvar, mas em vão. Carolina e o irmão estavam oficialmente sozinhos no mundo. É claro que tinham mais família que se preocupava com eles, mas nada era igual ao pai e mãe. Morreram ambos de doença. Não chateavam ninguém, viviam apenas para conseguirem ser uma família feliz. Mas até isso o destino lhes tirou. Tirou-lhe a felicidade, mas o pior, tirou-lhes a vida, sem que lhes desse a oportunidade de escolher o que preferiam.
Ligaram para o hospital, e pediram para falar com urgência com Carolina. Ao telefone, uma voz de mulher, que lhe pareceu ser a sua tia, disse-lhe a chorar:
- A tua mãe… a tua mãe…
- A minha mãe o quê?
- A tua mãe, a esta hora, já está no céu.
Carolina desligou o telefone e correu para a casa de banho. Atirou-se contra o lavatório, e caiu no chão. Parecia um filme de terror acompanhar os seus momentos. Eram cerca de dez e meia da noite. Uma enfermeira correu atrás de Carolina e ouviu o seu pânico do lado de fora da porta. Carolina disfarçou o choro, e disse, está tudo bem. Podia esconder o que lhe tinham dito ao telefone, já que sabia que a tinha não tinha conseguido dizer nada, a não ser a Carolina. A enfermeira foi embora, e carolina colocou os dedos na boca e vomitou tudo. Queria destruir-se, desaparecer da vida. Evaporar. Tinham-lhe tirado tudo, e o pior, é que ela não estava lá, nem para ajudar. Estava concentrada na sua vida, sendo egoísta. Apesar de não ser responsável pela morte dos seus progenitores, sentia-se a mais culpada e a pior pessoa do universo. Tinha nojo de si. Enquanto chorava, depois de vomitar, batia nela própria e atirava-se contra as coisas, desesperada. Depois, correu á cozinha, com o pretexto de beber água. Abriram-lhe a porta, porque aquilo já tinha acontecido várias vezes, e confiavam no sucesso e recuperação dela. Apanhou duas caixas de calmantes e escondeu-as no bolso. A enfermeira fechou de novo a cozinha, e Carolina seguiu para a sala de convívio. Já estava toda a gente recolhida nos seus quartos. A porta da sala estava fechada, pois André continuava lá a tocar. Para não incomodar os outros, e sabendo que ele era inofensivo, fechavam-lhe a porta para que os outros pudessem descansar. Sabiam que com o piano, nada mais fazia. Limitava-se a tocar sempre com entusiasmo. Das poucas coisas que fazia, nada era com inspiração. Nada era como o piano. Carolina abriu a porta em silêncio e entrou. Ouvia-se apenas o seu choro. Mas, André não se virou, nem quando a porta se abriu, nem quando ouviu os primeiros soluções. Carolina estava a chorar desesperadamente, ainda que tentando fazer o menos possível de barulho.
A enfermeira espreitou pelo vidro do cimo da porta e viu tudo impecável. André, como o normal, tocava concentrado. Carolina estava encolhida no sofá, com um copo de água pousado na mesa. Aparentava olhar para a janela em vidro, que lhe mostrava as árvores e a vida lá fora. Absorvia-se muitas vezes com aquele cenário. Na verdade, apercebia-se sempre da importância da vida e da natureza, sempre que só a podia ver da janela, sem nunca lhe tocar. Mas, daquela vez, era uma excepção. Não olhava para lá para fora, apesar de dar a entender isso á enfermeira. Disfarçava apenas o seu choro descontrolado. Ao ver tudo bem, a enfermeira deu as costas á porta, e seguiu para ir ver os outros. Carolina tinha milhares de ideias a passar-lhe pela cabeça. Vomitar até morrer, enforcar-se, espetar uma faca em si própria ou um tiro. Tudo o que lhe pudesse tirar a vida. Ainda que por cobardia. Depois de todos os acontecimentos da sua vida, não podia ficar sem coragem, e desistir da sua existência. Tinha que ser forte, e triunfar pelo mundo fora, para que mais tarde mostrasse ao destino que conseguiu. Para que ele percebesse, que mesmo tirando-lhe tudo que tinha de bom na sua vida, conseguiu atingir o sucesso. Não era essa a sua ideia. A sua ideia era fundir-se na inexistência. No vazio. Limitar-se a desaparecer. Ir ter com os seus pais ao céu, se é que o céu dos mortos existe em forma de paraíso. E viver feliz na eternidade, já que depois da morte mais nada há.
Chorava, e, parecia que por coincidência, a música dinâmica de André, se transformava numa melodia pesada e triste. Um cenário perfeito para perder o controlo, e se entregar á morte. Essa palavra que lhe custava tanto pronunciar. Uma simples palavra que lhe tinha tirado o corpo e a alma dos seus pais de perto de si. Certamente que o espírito andava por perto dela, para a proteger. Mas, não era concreto. Não podia falar e obter resposta. Não podia dar e receber amor e carinho! Uma palavra de cinco letras havia-lhe tirado os seus pais, apesar de em tempos diferentes, tinha-lhe tirado os dois.
Não sabia como reagir a uma coisa na qual nunca tinha pensado. Já quando o pai morreu… não sabia como superar a situação, porque apesar de ele ser doente, teve sempre a esperança de que com ela, aquilo não podia acontecer. Quanto á mãe, também sabia que ela não ia viver muito tempo. Mas sabia-o apenas no inconsciente. Porque tinha fé de que não a podia perder. Já tinha perdido o pai, como figura real. No seu coração nunca o perdera. E, apesar de lhe falar e nunca obter resposta, sabia que ele a protegia onde quer que estivesse. Agora, perder o pai e mãe? Quem lhe ia dar carinho e raspanetes? Quem a ia orientar e ajudar na sua vida? Não tinha que explicar, nem justificar-se. Eram os seus pais, queria-os ali e pronto. Apenas porque a sua presença era fundamental á sua felicidade. Ressuscitar o pai era impossível. Mas tinha aprendido a viver com isso. Mas perder também a mãe?
Era a segunda vez que era invadida por um sentimento de impotência. As coisas não dependiam de si. Por momentos esqueceu-se de tudo na sua vida. Concentrou-se apenas nos seus pais, que não estavam ali. O pior de tudo, é que não estava com a sua mãe quando tudo aconteceu. Ainda para mais por caprichos seus com o seu peso! Pensava: “como sou egoísta. Eu é que devia morrer. Estou sempre concentrada em mim, e quando perco as coisas é que lhes dou valor. Eu sei que muita gente é assim. Mas eu não posso ser. Apesar de ser. Porquê? Porque é que a vida é assim? Porque é a mim que as coisas acontecem? Eu sou tão má pessoa que o destino me quer tirar tudo?”. Imaginava também onde estaria o seu irmão, como e com quem! Estavam ambos na mesma situação, perdidos…
Não acreditava em Deus. Mas acreditava em espíritos, e essas coisas esquisitas do além. Uma vez ouviu já não se lembrava onde, que quem morre cedo é porque completa rapidamente a sua missão. E por essa mesma razão não precisa de estar mais tempo na terra e pode ser feliz apenas como espírito na eternidade da pureza. Não chegava a conclusão nenhuma. Apesar das múltiplas desculpas que Carolina arranjava para tentar compreender a morte das suas pessoas mais queridas, não conseguia. A música que a envolvia ia ficando progressivamente, mais calma e relaxante. Sem nunca parar obviamente. Era criada naquele momento, André não seguia nenhuma pauta ou caderno. Seguia ideias da sua imaginação, ou músicas que já conhecia da sua cabeça. Carolina tinha invertido os papéis com André. Naquele momento ele era o normal, e ela estava sugada da vida, era apenas um corpo que chorava, fechado do e ao mundo.
Os comprimidos estavam ainda no seu bolso. E não estavam esquecidos. Aguardava apenas que André se fosse deitar, coisa que parecia nunca mais acontecer! Numa corrida, foi ao vidro da porta a ver se não vinha ninguém. Estava estudo escuro, e nem um corpo se passeava naqueles corredores pouco iluminados. Sentou-se no sofá, e como a cumprir um ritual, tirava ritmicamente os medicamentos da palete, e enchia cada vez mais a mão esquerda com pequenas pastilhas. Quando esvaziou as duas caixas, colocou-as de novo no bolso. Levantou-se e foi ao pé de André. Disse-lhe:
- Sabes, o meu pai morreu há já algum tempo. A minha mãe morreu hoje!
Ele ignorou-a como sempre, continuando a tocar. Carolina berrou-lhe ainda a chorar:
- Consegues imaginar a dor? Consegues? Responde! És tão cobarde. Tens tudo para seres feliz. Tens pai e mãe contigo. E, em vez de acordares para a vida, finges-te de cego, surdo e mudo. Como se te fosse uma infelicidade pré-determinada.
André continuou a tocar, como se a conversa não fosse com ele. Mas Carolina tinha que libertar as últimas energias em alguém, para conseguir tomar todos os remédios.
- Já tinha percebido que falar contigo era uma perda de tempo. Ainda assim, pensei que ao veres alguém a sofrer como eu, dissesses alguma coisa! Isso é solidariedade. Mas não! És um fraco egoísta… como eu fui tanto tempo.
Sentou-se novamente. Desta vez com a coragem necessária para desaparecer. Sair apenas dali, e estar onde devia: junto a seus pais.
Tomou os remédios o mais depressa que conseguiu. Não todos de uma vez, mas cerca de cinco em cada gole de água. Estava nervosa, e mantinha a sua mente vazia, para que não se arrependesse e pudesse ir ter com seus pais.
Não foi imediato. Mas, uns minutos depois ouve-se um barulho seco e duro a cair no chão de madeira. Era como se fosse um saco cheio de vida, a perder-se no vazio. Esse som, da sua queda, foi imediatamente abafado pelo continuar da música de André, que nem se virou. Os olhos de Carolina reviraram e ficaram imóveis e abertos. O seu corpo magro caiu por cima dos seus braços encolhidos. Se tivesse sido assistida imediatamente, talvez sobrevivesse. Em vez disso, ficou ali até ao dia seguinte de madrugada, e André sempre a tocar, toda a noite escura, sem se virar.
A morte é dolorosa para os que na terra ficam. Pode ainda ser a maneira mais cobarde de fugir aos problemas que a vida trás. Será destino? Será uma força? Ou será Deus? Apesar de tudo de sobrenatural que possa existir, a tua vida és tu! Sê sempre mais forte que ela, e que as circunstancias a que ela te leva.
Carolina foi enterrada e coberta de malmequeres. O seu corpo ficou junto da campa dos seus pais. Enquanto que a sua alma, fundiu-se no vento como ela tanto queria, e deixou-se ser feliz… junto das almas que amava e que a amavam!

Pousei a máquina fotográfica no chão, por pouco tempo. Dobrei-me para a frente, pousei as pernas e encostei-me a uma pedra mesmo perto de mim. Balancei as pernas entre o ar e a terra. O vento batia-me na cara como se estivesse zangado comigo. Via o sol entre as nuvens, bem lá no alto... o céu variava entre o azul e os tons acinzentados. Não chovia, embora provavelmente estivesse perto. Eu sentia o cheiro a fresco, a vento, a liberdade. Olhava longe o infinito e procurava sensações virgens. As folhas voavam em diferentes direcções como se não tivessem destino! E eu? Tinha destino? Abanava as pernas com convicção. Sentia um arrepio voar-me pelo corpo quando olhava a distância a que estava lá de baixo. Ainda assim não descia. A adrenalina de fazer o errado, de fazer o ilegal o irresponsável... é uma sensação tão forte que tomava conta de todas as partes de mim. Os meus olhos não largavam a impressão de impotência de não prever o futuro. Não sei se amanhã estou a chorar ou se estou feliz!! Será que vivo com medo de não saber o que me irá acontecer com o evoluir do tempo? Encosto as pernas. Chego-me para o lado, e procuro às apalpadelas onde me posso deitar. Agora vejo o infinito por outro prisma. Se primeiro era verde e intocável. Agora mantém-se inatingível, mas azul, cinzento e branco. Era natureza. Agora é céu. É estranho procurar respostas mesmo sabendo que não se vão achar. É triste fazer pedidos que não se vão conceder. Magoa chorar por não se ter quem se ama.
Eu paro ou balanço as pernas, os meus desejos não se concedem. Eu olho a natureza ou o céu, as perguntas não têm resposta. Pousei as mãos viradas para cima e finalmente percebi que quando peço, devo pedir a mim. Quando desejo, devo ter a força de desejar em mim. Quando choro, devo conseguir parar por mim. Quando penso no que acontecerá amanha, devo saber que quem constrói o meu caminho sou eu...

Somos todos iguais
Ela é loira, magra e com um metro e setenta. Eu tenho cabelo preto e sou normal. Definitivamente se passássemos as duas na rua, o mais provável seria só ela ter audiência. Eu sou casada, ela é solteira. Eu visto roupa descontraída, ela veste sempre vestidos sexys como se estivesse a tentar atrair alguém. Eu saio de casa com apenas creme na cara, ela arranja-se toda. Eu calço sapatilhas, por vezes sapatos; ela calça aqueles sapatos de tacão alto e agulha, que tornam o seu andar um rastilho para uma explosão. Eu abano a caneta, ela morde o lábio. Eu sou simples. Ela é provocante. Eu sou divertida. Ela é séria. Eu sou ternura, suavidade e carinho. Ela é selvagem.
Eu amo de forma incondicional e verdadeira. Ela ama o meu marido!
Não que me sinta ameaçada ou perseguida. Não sinto medo. Não quero fugir. Não me sinto em baixo.
Ela é incrível! Oh, que pernas compridas. Que cintura fina. Que cabelos loiros ondulados. Que olhos enormes. Que peito firme! Não temos comparação realmente. Eu não sou horrível... sou apenas mais indiferente que ela. Os meus cabelos pretos deixam-me muito semelhante ás restantes mulheres. A minha pele é pálida... e não tenho medidas formidáveis.
Incomodam-me sim pensamentos desfocados que me invadem a cabeça com a mensagem de que sou mais fraca. Ela é mais sensual, mais atraente, mais erótica. Ela tem um olhar feroz. Eu sou tímida.
Ela provoca. Eu converso.
Ela atrai. Eu observo.
Ela despe. Eu dispo.
Ela é solteira. Eu sou casada!
Ela gostava de assentar... eu tenho filhos!
Ela procura a cor da sua vida! Eu sou feliz...

É incrível o valor que a aparência tem na vida das pessoas!
Ainda assim, não é a imagem que dita a felicidade!!!

Sou possessivo, obsessivo e transtornado! Não me sinto deste mundo! Penso diferente dos outros, observo as coisas por outro prisma (não pelo da normalidade)... como, sinto, cheiro!!! Tudo como se fosse um monstro que não deve viver aqui, com o resto das pessoas. Não fiz mal a ninguém, não matei ou violei alguém. Retirei de ti a essência de que precisava para ser feliz. Se afectei a tua vida com isso? Talvez. Provavelmente sim. Mas ainda não estou preparado para enfrentar essas duvidas e esses problemas. Gosto de ti de uma forma estranha e diferente. Não é andar de mãos dadas, não é gritar de paixão ou ter um sorriso de orelha a orelha... não é ficar acordado até tarde, ou rebolar na relva. Não é ir ao cinema, viajar ou andar á chuva! Não! Não é isso. É uma paixão arrebatadora. É delicioso poder sentir-me assim, tão forte... tão seguro! As fotos não matam saudades. Os telefonemas não fazem sentir-te por perto. O teu perfume não faz lembrar-me de nós. Não sou assim! Talvez os outros vejam este amor como uma obsessão. Se calhar sou maluco e não percebo o quão diferente é amar. Mas para mim, nada faz mais sentido que este nosso amor puro e verdadeiro. Se me amas? Sei que me amas! Sinto-o dentro de mim! Não são as mãos dadas na rua, o anel de compromisso ou as sucessivas mensagens que me fazem perceber isso. És tu mesmo! Tu em ti como minha essência. Amor é isto. Estranho. Que me transporta para um mundo de fantasia como se estivesse a alucinar. Se falo contigo e não estás aqui? Se te sinto e estás longe? É provável... para mim estás sempre comigo!!