sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Gato que brincas na rua

És feliz porque és assim.
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

(última estrofe do poema "gato que brincas na rua")
Fernando Pessoa

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

sorriso

Tinha o sorriso mais calmo e transparente que uma mulher podia ter. Ninguém era indiferente ao gesticular da sua boca, dócil e infantil. Antes de sorrir, fazia sempre um biquinho que cativava quem a observava. Não que fosse perfeita. Era apenas linda, com um recorte de lábios magnífico. Os dentes brancos sobressaíam sempre no batom que colocava ao espelho antes de sair de casa. Vê-la na sua manifestação de alegria, era como contemplar o nascer do sol. Contagiante! Talvez mágico. Poder olhar aquele momento, e desfrutá-lo. Que apesar de ter tudo de comum com toda a gente, toda a gente sorri, era visto de um diferente prisma, apenas por amá-la. Agora, passado apenas um dia da sua morte, o marido olhava a eternidade do seu sorriso nas imensas fotografias espalhadas pela casa. Era imortal, aquele rir, apenas porque era o que fazia de melhor, por ser tão sincero. O amor fervilhou quando a viu sorrir a primeira vez. E, agora, depois de a ver ser coberta de terra, continuava a lembrar aquele sorrir, digno de um anjo. A sua paixão era algo que não dava para descrever. A ligação pertinente e feliz era recordada com orgulho. O primeiro amor, que se transformou numa paixão diária, e aproveitada, até aquele maldito tumor aparecer. Nada a fazia deixar de sorrir. Era com vaidade que observava todos aqueles momentos de felicidade da mulher, sabendo que poderiam ser os últimos. Mas nunca lho dissera. Limitara-se a viver como antes de tudo. Tinha uma vontade cega de imortalizar todas as oportunidades com ela, sabendo do negro futuro. Apesar de saber que, no filme da vida, não há o botão “pause”. Na sua cabeça arrumava as ideias, bem definidas. Sempre que podia, filmava ou tirava fotografias. Tudo o que pudesse marcar a sua vida com ela, era registado. Mas, agora, depois do funeral, o que tudo isso lhe trazia? Mágoa? Impotência de não comandar a vida de quem ama? Como conseguiria continuar a ser feliz, sem aquele amor? Sem aquele sorriso, que afastava tudo o que de mau os envolvia? Os momentos vivem-se na altura. Não há nada, recordação alguma, que tenha o poder de nos transportar para lá, e fazer sentir tudo o que se passou ali. Nem as alegrias ou tristezas, os cheiros, as cores, as pessoas que lá estavam. Nada conseguiria levá-lo dali para a eternidade com ela, para a felicidade.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Verde

Porque sim! Atormentas-me sem que eu te dê permissão. Procuro-te no ar, e nunca percebo bem onde ficas. Desfocado, permaneces sempre em silêncio, sem responder ás minhas perguntas. Berro porque me sinto desesperada, e assim, talvez me sinta mais livre. É confuso. Na realidade não sei o que achar de mim, quanto mais de ti. Vagueio apenas perdida num mundo, que por me envolver, nunca se esforça por me perceber. Inútil… não sei se tenho mais valor que uma folha em branco! Tantas linhas por escrever, tanta vida por viver. Preenches-me?

Verde


domingo, 14 de fevereiro de 2010

Sei lá...
Porque quando me tocas
Me elevas...
Flutuar no mar!
Quando me chamas...
Me desejas
Mas não queres amar!
O pecado...
Fruto, delicia de achar!
Venero-te
E, este quero-te
Nunca irá acabar...

30-01-2007

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Ser descontente é ser homem

O homem é um ser vivo muito complexo. Talvez o mais complicado de perceber, mas também o mais completo. Possui uma capacidade que o distingue dos demais… consegue pensar. E é o pensamento que o transforma e transporta, que o envolve em tudo o que compõe o seu leque de gostos.

Um traço bem vincado que caracteriza o homem, é o seu descontentamento face ao que o rodeia. Tem ambição, quer sempre mais. Devido á fantasia que vive dentro de si, e o motiva a avançar no processo que é viver. Sente-se descontente, mesmo quando conquista algo. Porque, na verdade, mesmo quando consegue alguma coisa, o seu pensamento já vai distante em outra meta que quer alcançar. É insaciável por isso mesmo. Ambiciona tudo, e nem o horizonte o limita. Isto porque os seus sonhos são capazes de revirar o mundo, transformar pensamentos, fazer surgir novas ideias. Nem o céu é o limite para as reflexões ou fantasias do homem. Sofrer é inevitável. Faz parte do percurso a percorrer. Magoa, faz com que o homem perca forças, faz até chorar… e muitas vezes desistir de algo. Ainda assim, o homem faz questão de criar novas metas, camuflando muitas vezes a dor com novas ambições.

O descontentamento forma o homem, pois os seus desejos são vários, e multiplicam-se á medida que se vão conseguindo conquistar alguns deles. O que distingue o homem dos outros seres vivos é exactamente isso: a capacidade de se conseguir transportar mentalmente para o paraíso, fazendo com que se sinta descontente, por não se puder transportar para lá fisicamente. Lutando assim para saciar as suas ambições e desejos, sendo descontente apenas por ser homem!

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Copo

Para escrita criativa foi nos pedido que fizéssemos um texto sobre um copo.

A vida de copo é complicada.

Aliás a vida é complicada.

A fragilidade do meu corpo também em nada ajuda, pois sou de vidro! Mas, nem assim me considero mais feliz! A minha vida é sobretudo ao fim da tarde e noite. Tirando isso, estou sempre aqui encaixado com os meus semelhantes… todos iguais nesta prateleira, e nem sempre a sorte é a minha, nem sempre sou eu o escolhido para servir alguém. A minha vida é uma monotonia… ora estou na prateleira, ou com um fino na mão do cliente, ou na máquina de lavar… sempre tive um grande sonho. Ser um copo com classe, com charme! Ser um copo de champanhe! Servir pessoas da classe mais alta. Servir pessoas com nível, chiques! Mas, agora contentava-me por ser o mesmo copo num hotel. Ou estava na esplanada, ou no bar no meio da piscina, ou na sala de jantar. Mas não! Estou aqui nesta taberna, na prateleira atrás do balcão, com este senhor carrancudo, o senhor Carlos, a transportar-me de um lado para o outro. Ou na máquina, ou na prateleira, ou na mesa. A minha vida é uma monotonia. Sou um copo em depressão… e ninguém cura os meus males! Ninguém me leva daqui para outro lugar. Nem os lábios que me tocam são macios e requintados como os das belas mulheres que tocam nos copos de champanhe. Mas agora, só me podia transformar se fosse para o vidrão. A composição do meu copo é rija, e não lasco nem parto. Já vi muitos amigos a irem embora porque lascaram ou partiram. Quem me dera que isso me acontecesse. Para dar uma volta á minha vida. Mas ainda sou do tempo em que as coisas eram feitas para durar, e nada me acontece. Não consigo dar a volta á minha vida que tanto queria. Os lábios que me tocam são apenas os de trabalhadores, que nem a barba fazem. Ai, as cócegas que me fazem. E o hálito? Ás vezes parece que estão zangados ou em greve com a escova dos dentes, ou a pasta dentífrica. Sou infeliz. As minhas características são comuns a todos os que partilham a prateleira comigo. Por isso é que resolvi escrever para o “Querido, mudei o copo”, para ver se me vêm buscar á taberna do Carlos e me transformam num copo de champanhe.


In Magazine Glass

“Confissões de um copo”

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

sombra


Se pudesse escolher entre eu e a minha sombra… escolhia a minha sombra! Inanimada, despreocupada! Sempre seguindo a sociedade á margem da população. Discreta, e sem um olhar importante. Não fascina ninguém. Persegue-me apenas a mim, nos dias de sol e por vezes á noite. Quanto maiores contrastes, mais nítida e forte se torna. Acompanha-me mesmo que precise de um tempo a sós. Nada lhe interessa a meu respeito. Mesmo conhecendo-nos desde o inicio da minha existência, permanece no lugar, até quando choro, e precisava de apoio. Nunca me tocou, ou se lembrou de vir para dentro de mim. Quem sabe, acompanhar-me lado a lado! Deixa-me á minha mercê. Sem dar importância á minha rotina, aos meus passos rápidos ou lentos, sem dar importância se vai desaparecer, ou se vai passear comigo toda a tarde. Deixa-se banal, colada no chão. Não me tenta ajudar, não me apoia, ou evita que eu caia. Se me magoar, ela está lá! Calada! Insegura, talvez. Mas nunca tremida. Acompanha o meu passo simetricamente, sem querer saber o que preciso. Mais alta ou mais baixa, é o meu contraste. Tento passar para essa mancha escura, que me acompanha muitas vezes reflectida no chão, tudo o que de mau tenho dentro de mim! Afinal… ela não sofre! Mas, serás tu realmente minha… sombra?